Corria o ano daquele meado da década de 1940 e, o futebol nas cidades das terras outrora contestadas, também era preliado no pequeno campo situado naquele altiplano, onde se localizava aquela escola dos padres franciscanos, Colégio São José. As duas principais e rivais agremiações das cidades irmãs no pós guerra do contestado, União E.C. e Palestra F.C. ataram um prélio e duelariam em busca da Taça Brahma, a maior vista até aquela data, doada pelo senhor Aníbal Manfroni, dono da firma Bebidas Manfroni. Com os dirigentes dos esquadrões se armando de craques de todos os lados, os do União foram mais adiante. Intermediados por um torcedor, que tinha um sobrinho artilheiro que defendia as cores do famoso Operário Ferroviário de Ponta Grossa, campeão naquele ano, investiram para trazer o cobra para defender o quadro de camisas na cor encarnada (vermelha). Precedido de um grande cartaz, o Tonico Lencinho, diziam, era craque que batia com as duas, testava como ninguém e, normalmente, o seu marcador ficava sentado quando ele partia com a redonda dominada, além de que, tinha um faro de gol, tanto é que fora o artilheiro do último certame na sua terra de origem. Após passarem um telegrama na Estação Ferroviária, ficaram no aguardo que o Tonico confirmasse, pois além do “boró” que entraria no seu bolso, notas altas, o “balançador” de redes ficaria hospedado na casa do seu tio, tudo boca livre.
Tendo o dianteiro artilheiro confirmado presença para aquele clássico futebolístico, na boca da noite do sábado, véspera do cotejo, os dirigentes do União, bem como seu tio, foram recepcioná-lo quando chegou de trem na Estação União. Em uma mala de papelão, daquelas que os mascates usavam à época, o avante trouxe os seus apetrechos para atuar no domingo, suporte (calção elástico para segurar e proteger as partes baixas), seu par de chanca preferida já bem adaptada aos seus pés goleadores e o tradicional lencinho que costumava usar na sua cabeça (sem ele não desempenhava a contento dentro das quatro linhas – era a origem do seu pseudônimo). No domingo, quando sozinho se dirigia para o palco da peleja, no meio do caminho, Tonico Lencinho foi interceptado pelos diretores do quadro contrário, Palestra, que lhe ofereceram o dobro para que atuasse para eles. Sem pestanejar, pensando só na bufunfa que ganharia, entrou no Ford Coupé do presidente do Palestra e, camuflado, pelos fundos do campo adentrou ao vestiário para se fardar.
O mediador trilava o seu referee já com o Palestra dentro das quatro linhas. No vestiário do União o nervosismo tomava conta, pois todos os contendores estavam prontos, só faltava o famoso “quera” do Operário de Ponta Grossa que estava atrasado. Como ninguém conhecia o maioral, nem sequer passava pelas cabeças das vivas almas, que o especialista pontagrossense em tentos, tinha sido “comprado” e já estava dentro do tapete verde, todo fardado com o uniforme do Palestra. Como o “esperado cobra” não apareceu, sem outra alternativa, o quadro do União adentrou ao campo com os seus jogadores locais. O torcedor do União que intermediou a contratação do sobrinho, quando vislumbrou o seu parente fardado para atuar pelos contrários não abriu a boca temendo sofrer represálias.
O cotejo foi de uma grandeza nunca vista. A massa torcedora se apinhava nas escadarias ao lado do gramado e aos gritos tentava incentivar os “cobras” do seu esquadrão de coração. Era lá e cá em uma contenda frenética e muito equilibrada, onde o avante (comprado) do Palestra, Tonico Lencinho, boleiro nunca visto por estas bandas, dava show, chutava a redonda como ninguém. Já ao final daquela pugna abaixo de um aguaceiro, prevaleceu a igualdade elevada no placar, 7 a 7 (sete número da mentira, mas não é). Pelo bando do Palestra, o craque pontagrossense estufou as redes por quatro vezes, um tento mais lindo que o outro. Na turma do União, despontou o jovem ponteiro esquerdo, Doro, que fez três tentos em cobranças de tiros esquinados, batendo na bola de capotão sempre com o pé trocado. No final do tempo derradeiro, a igualdade no escore estava estampada, então, a grande taça seria decidida nas cobranças de faltas máximas, pênaltis.
Os protagonistas até aquele momento do magistral prélio de futebol, Tonico Lencinho, pelo Palestra e Doro pelo União tiveram a responsabilidade de efetuar as batidas. Debulhava água no momento das cobranças. Mesmo o guapo do Palestra se atirando em todas as bolas não deu para ele, pois com três balaços, o jovem Doro fez o capotão encharcado dormir no fundo do filó. Tonico Lencinho, com um sorriso maroto e demonstrando uma baita confiança, nas duas primeiras cobranças meteu a peca na gaveta, lá no ninho da coruja, o arqueiro do União nem se mexeu. Na terceira cobrança, se achando e querendo fazer graça, Tonico Lencinho simulou uma paradinha (até aquela contenda nunca se havia visto esse estilo de cobrança – aprimorado pelo Rei do Futebol em 1960) e na hora de chutar, resvalou, pegou mal na pelota dando um chute xoxo no meio do arco, facilitando a catada do guapo do União, que caiu de joelhos com o balão de couro encaixado entre os braços e peito. Por 03 tentos a 02 o União triunfou e ganhou o direito de levar para a sua Sede na baixada unionense, aquela taça com quase dois metros de altura. Enquanto os jogadores do União davam a volta olímpica e se atiravam naquele tapete verde surrado pelas solas das chuteiras e, totalmente encharcado, Tonico Lencinho era hostilizado pelos torcedores, inclusive levou um calote dos diretores do Palestra que não lhe pagaram o combinado e o expulsaram do vestiário. Sem outra opção, Tonico foi pedir arrego na casa do seu tio. Lá chegando, encontrou o portão no cadeado e, foi surpreendido quando a sua tia jogou por cima da cerca a sua mala de papelão toda cortada com um machado. Passou a noite dormindo na Estação União e não se sabe, como conseguiu dinheiro para pagar a passagem de trem na segunda-feira pela manhã, quando viajou retornando para a sua querida Ponta Grossa.
Noite adentro após a conquista da grande taça, diretores, jogadores e torcedores do União, para comemorar, passavam em todos os bares que encontravam, enchiam a tampa da taça com cerveja e, cada um era convidado a dar um “golapaço”, sempre entoado com o grito de guerra do esquadrão, num refrão em homenagem ao seu craque artilheiro, Doro, que começava a despontar para deixar o seu nome escrito na linda história do futebol amador de Porto União da Vitória.
Publicado no Jornal Caiçara em 02/05/2020.