Era um final de tarde qualquer de 1966, e, lá estava eu, menino ainda, mas se aproximando da puberdade. Sentado nas cadeiras da tribuna de honra da arquibancada do já lendário Estádio do Ferroviário Esporte Clube, para assistir a mais um treino coletivo do Ferrinho (nome carinhoso dado ao esquadrão da Vila Famosa). Naquele tempo só existia a arquibancada central, as laterais foram construídas juntamente com a formação do time profissional da Associação Atlética Iguaçu em meados de 1971. Com as pernas cruzadas querendo parecer um homem, eu acendia um cigarro após o outro e, sem saber direito como se pitava, tragava aquela fumaça adocicada dos cigarros mentolados da carteira de marca Consul.
O treino coletivo estava para iniciar e no time de reservas estava faltando um jogador. Foi convidado, então, um senhor de boné e já de certa idade que estava sentado na arquibancada, que aceitou de pronto o convite, só que impôs uma condição, treinaria na ponta esquerda, posição essa que ficava bem em frente da arquibancada. Aceita as suas condições, o homem se posicionou no local, retirou o boné colocando-o na cintura. Com o desenrolar do treinamento, percebeu-se, que mesmo calçando uma “sete vidas” (uma conga de qualidade inferior, sem biqueira de borracha) o toque na bola dado por ele era diferenciado, elegante e com refino. Lembro que, no decorrer do match treino, o arqueiro do time reserva, que estava na meta dos fundos ao portão de entrada, deu um balão e a bola foi em direção ao referido senhor. Ele, de chaleira, dominou e, sem que ela batesse no chão, começou a controlar a bola com os dois pés, ombros e cabeça. Extasiado com a habilidade fiquei contando, sei que passaram de duzentas controladas. Eu e os demais expectadores ficamos atônitos, olhando. Após o término do “espetáculo”, o senhor pegou a bola com as mãos e a colocou no chão, reverenciou todos os jogadores, colocou o boné na cabeça e pedindo desculpas saiu de campo dizendo que tinha um compromisso. Antes de subir na sua bicicleta, vendo que o pessoal que estava sentado na tribuna o estava observando, ele perguntou: Querem mais? E sem que ouvisse a resposta, retirou uma pequena bola de borracha de dentro de um pacote que estava pendurado no guidão e começou a controlar. Meio zonzo devido à fumaça, eu fiquei extasiado com a comprovada categoria daquele homem. Tendo feito vários controles montou na sua bicicleta e foi embora. Diante do fato lindo e inusitado fui perguntar para as pessoas presentes quem era aquele homem. Responderam-me com uma pergunta. “Você não conhece o Cabrita? Fui investigar e descobri que o homem era um cracaço de bola. Fez parte do famoso esquadrão do Ferroviário E.C. no pentacampeonato da L.E.R.I. (Liga Esportiva Regional Iguaçu) na década de 1950. Esteve no Clube Atlético Paranaense e não quis ficar. O pessoal da velha guarda o viu atuar e se deleitava com sua categoria.
Quanto aos cigarros, como expectador do show do Sr. Cabrita, fumei todos da carteira e, após o final do treino, comecei a me sentir mal. Saí do Estádio e me dirigi para casa com tontura e ânsia de vômito. Quase em frente de casa, em um capão de mato, deitei e “estrebuchei o mico”. Acordei já de noitinha com os gritos da minha mãe e com o tradicional assobio de meu pai, que desesperados estavam me procurando. Levantei-me e consegui chegar em casa contando para eles parte do acontecido, omitindo que a causa do meu mal estar foi a carteira de cigarros.
O meu pai já foi para o outro andar, mas a minha mãe está por aqui, e hoje em dia, faz comentários e me elogia por eu ser um filho que nunca fumou, não sabendo ela até agora, após essa crônica, que nunca fumei por ter fumado aqueles vinte cigarros da marca Consul.
Amigos leitores! Vocês foram brindados com essa crônica que fará parte do futuro livro que brevemente será lançado, APÓCRIFOS DA BIOGRAFIA DE UM DESCONHECIDO.
Matéria publicada no Jornal Caiçara em 02 de agosto de 2019.