Quando comecei a fazer parte do contingente militar em 1974, já namorava firme. Estava engatado numa menina e vivia mais na casa dela do que na minha, especialmente nos finais de semana quando não estava de serviço no batalhão, passava grudado nela, era igual dedo e unha.
As minhas folgas no quartel começaram a rarear, principalmente quando o comandante do meu pelotão estava de serviço, pois nessa situação ele arrumava partidas de futebol para serem jogadas no batalhão domingo pela manhã e quase que me obrigava a participar dessas partidas, para tanto, me escalava de serviço junto com ele, assim tinha a garantia que eu jogaria. O pior é que o homem tirava serviço domingo sim e domingo não, portanto dois finais de semana por mês eu estava escalado. Diante desse fato, a minha namoradinha resolveu reclamar e para me afrontar, começou a ir com suas amigas em festinhas e bailes. Como ela era “ajeitadinha”, a gavionada começou a pousar em cima e eu já estava ficando só nas saudades. Para tentar contornar aquele imbróglio, marcamos um encontro em uma quinta-feira para conversarmos e acertarmos os ponteiros. Combinamos de ir assistir um filme na promoção semanal do SESI, no Cine Luz, onde os ingressos eram mais baratos.
Ansioso para matar as saudades, sem outra opção, tive que ir ao cinema fardado, usando a tradicional farda de passeio, que para não dizer que era feia, era simplesmente horrível e, como eu não tinha permissão para andar à paisana, tive que encarar. Entrei no cinema com as luzes apagando e com as cortinas de entrada sendo fechadas. Procurando na penumbra, encontrei-a como combinado, sentada nas primeiras filas, perto da tela. Sentei-me ao seu lado bem na hora que uma cena do filme clareou parcialmente toda a parte interna do cinema e ela pode me vislumbrar. Pela expressão, senti que não ficou satisfeita com o que viu, pois começou a fitar o meu “bibico” (quepe de passeio), que esqueci de tirar da cabeça quando adentrei ao cinema. Olhando para ela meio sem jeito e envergonhado, ouvi quando ela disse que estava em dúvida se gostava ainda de mim, porque tinha conhecido outro cara e a dúvida apareceu e, naquela noite queria decidir com quem ficaria. Para tanto, também tinha convidado o meu concorrente para estar ali. Ela o chamou e ele sentou do outro lado. Diante daquele fato, o meu machismo imperou. Chifre não era comigo, era bom para a cabeça dos outros, pois em testa que mamãe beijou vagabunda nenhuma botaria galho, e não botou. Pressentindo que eu ia armar o paletó ela me segurou e, olhando um pouco para mim, um pouco para o rival, como se tivesse analisando quem era o melhor, disse que eu tinha ganho a parada. Ouvindo aquela prosa, o fulano escafedeu-se e eu também piquei a mula. Ela que fosse procurar o bando dela, comigo não mais.
Mesmo não tendo mais a namoradinha, eu já andava com o saco cheio de ser escalado para tirar serviço no domingo só para ter que jogar bola com o meu comandante e, naquela sexta-feira, no final do expediente, contei uma mentira para ele e fui liberado da escala de serviço, mas me comprometi que viria jogar. Não apareci no domingo para jogar, o “bicho pegou” e as minhas regalias começaram deixar de existir.
Na segunda-feira, sem querer ouvir as minhas explicações, se é que eu ia dar alguma, na hora do pato (reunião para tentar justificar uma alteração/infração), me avisou que eu ficaria detido no quartel durante uma semana. Eu poderia ser liberado antes da punição se cumprisse a missão que seria me dada, que era ensinar um recruta a marchar, pois mesmo tendo recebido muitos castigos, até aqueles dias ele não tinha aprendido e todos já julgavam como uma causa perdida. A cada final de expediente o soldado faria a prova da marcha, se não soubesse, eu daria uma volta no perímetro do quartel com ele na minha garupa e continuaria detido. Pensei comigo, isso é “café pequeno”, esse fulano aprende já.
Lá nos fundos do batalhão, iniciei o treinamento. Totalmente sem coordenação motora ele não assimilava a sequência de movimentos para uma marcha correta. Uma passada com o pé direito também levava a mão direita à frente, com o esquerdo era a mesma coisa, levava a mão esquerda. Não conseguia fazer o movimento alternado, pé direito com mão esquerda e vice-versa.
E no final daquele expediente, com dor na espinha continuei detido, após dar uma volta em torno do quartel com o recruta nas costas.
No dia seguinte, retirei de uma árvore próxima um pedaço de embira (cipó) e, lado a lado, amarrei a minha mão direita na mão esquerda dele para que fizéssemos os mesmos movimentos. Não deu certo, embora os nossos braços fizessem movimentos iguais, as pernas não. Amarrei também a minha perna direita na esquerda dele, daí não conseguíamos sair do lugar.
Pensativo e tentando achar uma solução, observei um soldado, que com uma vassoura varria uma calçada e, num abrir de olhos, me veio uma ideia nova. Providenciei quatro vassouras e retirei os cabos. As extremidades de um cabo foram amarradas na canela direita minha e na canela direita dele. O outro cabo, nas mesmas condições, foi amarrado nas nossas canelas esquerdas. Eu, segurando em cada mão uma das extremidades dos outros dois cabos e, ele atrás, segurando as outras extremidades. Sem largar os cabos e acompanhando o meu movimento simultâneo de pés e mãos, aos poucos ele foi aprendendo, ficou craque e no final do dia deu um show de marcha. Foi testado de todas as maneiras e não errou nenhuma passada. Após o teste da marcha, fui liberado da pena, mas, final de semana sim, outro não, lá estava eu jogando futebol com o meu comandante. E lógico, as mordomias voltaram.
Publicado no Jornal Caiçara em 04/04/2020.