EMOÇÃO DE CALÇAR A PRIMEIRA CHUTEIRA

EMOÇÃO DE CALÇAR A PRIMEIRA CHUTEIRA

Coisas da bola

Coisas da bola são relatos de fatos vividos por mim, histórias contadas por amigos e outros frutos da minha imaginação.

Qualquer semelhança será puro acaso.

“Jair da Silva Craque Kiko”

Tempo de piá, infância pobre e muito difícil. Eu e a maioria dos meus colegas adorávamos jogar futebol. Onde quer que tivesse um espaço, lá estávamos fazendo um campinho e, mesmo descalços corríamos atrás da redonda e só íamos sentir as dores nos dedões quando chegávamos em casa e íamos lavar os pés em uma bacia, era aí que percebíamos os dedos arrebitados. Muitas vezes na falta do equipamento principal, a bola, a criatividade era posta à prova e, bolas de pano, de meias e até de estopa, eram confeccionadas. Nunca me esqueço de certo menino, protagonista porque tinha uma bola de capotão número 5 (conforme o número era o tamanho da bola – bola n°5 era a de tamanho oficial) e tinha lugar garantido na pelada onde os times eram escolhidos no par ou impar. Muitas vezes, antes de uma contenda, para que o “balão de couro” fosse preservado, principalmente em dias chuvosos, o dono da bola exigia que os colegas de futebol providenciassem e passassem na redonda um pouco de sebo, que era ganho do Sr. Romualdo, dono de um açougue ali na Rua Matos Costa, em Porto União. O sebo protegia o couro da absorção de umidade, pois dependendo do número da pelota, se encharcasse, ela ficava muito pesada e quem sofria eram os goleiros de menor envergadura, além de que, se alguém colocasse o cocuruto para interceptar um petardo, com certeza iria a nocaute e teria dores fortes de cabeça.
Já com um pouco mais de idade e mais robustos deixamos os famosos campinhos para atuar em campos maiores, onde esquadrões mais organizados já peleavam com bolas de couro de melhor qualidade, sendo que o principal acessório, para quem podia comprar, era uma chuteira. Eu jogava com um tênis Sete Vidas, que tinha um buraco na sola e normalmente era tapado com um pedaço de algum material mais resistente. Mesmo sofrendo gozações, não ligava, ia pro choque, mas partilhava da esperança e do sonho de todos os meninos de um dia ter uma chuteira. Quando conseguíamos ter, era uma alegria só. Engraxava, lustrava, cuidava como uma relíquia. O sapateiro da proximidade de nossas casas faturava com os consertos.
Lembro quando um piá do nosso quadro, com melhores condições financeiras, me contou que sua genitora perguntou o que ele queria ganhar de presente no dia de seu aniversário, ele que como eu, era fissurado em jogar futebol, pediu uma chuteira, pois bola ele já possuía. Então, sua mãe disse que lhe daria uma chuteira Gaeta (famosa marca de chuteira da época). Mais faceiro que égua com dois potrilhos ele contou a torto e direito para todo mundo, deixando também seus demais colegas de time, ansiosos para ver a famosa chanca que ganharia.
Sua data natalícia caiu em um sábado e, na boca da noite, seu pai ao retornar da jornada de trabalho, trouxe o esperado presente. Quando abriu a caixa ficou maravilhado e foi correndo calçar, percebeu que, só podia ser por engano, vieram dois pés esquerdos. A tristeza tomou conta do meu amigo, até porque, teria que esperar até segunda-feira para efetuar a troca e ele queria fazer uso da chanca já no domingo, em um torneio no campo da Madeireira Gugelmin (Campo que mais tarde passou a ser a Associação dos funcionários da empresa Miforte). Sua mãe, após ter discutido com o seu pai por não ter prestado a atenção quando comprou o presente, guardou a chuteira e chaveou dentro do seu guarda roupa, para que na segunda-feira providenciasse a troca. Ansioso para utilizar a chanca, o amigo, domingo pela manhã, enquanto seus pais ainda dormiam, deu um jeito, abriu o guarda roupa e pegou a chuteira para ir ao torneio.
Reunidos em frente da sua casa na Vila Ferroviária nos deslocamos até o campo do Gugelmin. Indo pela estrada de ferro, passando pela antiga Linha Velha (hoje Jardim Novo Mundo), todos nós queríamos olhar e pegar as famosas chuteiras que estavam penduradas pelos cadarços no pescoço do seu dono. Cada um, com os olhos vidrados, teve a chance de olhar e passar a mão naquela maravilha, pena que eram dois pés esquerdos. Já no campo, após sorteio, chegou a nossa hora de jogar. Levamos sorte, enfrentaríamos o quadro do Flamenguinho, nosso freguês, que era treinado por um soldado do Corpo de Bombeiros conhecido pela alcunha de Estrela. Muito ansioso e não aguentando a vontade de colocar a chuteira para jogar, após ser escalado pelo treinador Tarzan, mesmo com os dois pés esquerdos, o meu amigo calçou as chuteiras e foi pelear. Por ser um piá com uma estatura elevada para a sua idade, a sua estética ficou ainda mais prejudicada usando os dois pés esquerdos e, como era destro, tropicava constantemente e o seu bom domínio de bola deixou de existir virando um legítimo caneludo. Imaginem o craque chutando uma bola com o pé direito usando uma chuteira de pé esquerdo, só podia dar no que deu. Foi também alvo de muitas gozações e piadas da piazada contrária, tanto é que ganhou um apelido pelo qual é conhecido até hoje, Bracatinga Retorcida.
Com exceção de mim, por termos preservado uma forte amizade ao longo dos anos, quando é inquirido por esse apodo, não importa quem seja, parte para a briga. Para suavizar o pseudônimo, às vezes, eu o chamo de Braca. Não posso deixar de relatar, até para dar uma moral para ele, a criatura jogava muito, mas só quando estava com as chuteiras certas.

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