O prazer em contar histórias sobre o futebol é inigualável, você sente saudades e seus pensamentos vão a um passado, às vezes não muito distante, em um voo imaginário e a lembrança de amigos queridos vem à tona. A história de hoje relembra o amigo Abiks, alcunhado de Guito, que também como eu era um frequentador assíduo da nossa boca maldita na década de 1990, lanchonete e ponto de encontro dos amigos da bola, no centro de Porto União. Bonachão, sempre alegre, viciado em fazer uma fezinha no jogo dos integrantes da fauna, Guito nunca se furtava de dar um sorriso e contar um causo, mesmo quando, nos últimos tempos, estava passando por um período difícil e a sua saúde estava muito prejudicada, tendo que fazer uso de uma bolsa de colostomia. Quando ele chegava, já lhe era dado uma cadeira para sentar no centro e, em sua volta, sentavam os desportistas, loucos para ouvir os seus causos. O amigo Guito, já há bastante tempo se foi, mas onde estiver com certeza estará fazendo brincadeiras e contando causos, às vezes verídicos e muitos outros, inventados.
Certa vez, narrou ele – Deixando de ser um piá pançudo e já afeito a um idílio amoroso, nos anos da década de 1950 eu frequentava quase que, semanalmente, a zona do baixo meretrício, mas morria de medo de pegar a doença da época, a famosa gonorreia, para quem não sabe, uma bactéria, sexualmente, transmissível. O medo em si, não era sobre ser infectado pela doença, e sim, quanto ao tratamento para a cura, que era feito com aplicação de doses cavalares das famosas injeções de Benzetacil. Dizem que doía para “dedéu”, disse ele. Se fosse aplicada no braço, o vivente teria que deixá-lo na tipoia por vários dias. Quando aplicada nas nádegas, o “caboclo” andava muitos dias todo rengo e era um parto para se sentar, pior ainda na hora de fazer cocô. Mesmo tendo muito medo, dizia ele estufando o peito, eu não podia fugir da minha natureza de macho e usava da seguinte artimanha para matar, se tivesse pegado a dita bactéria: ao retornar para casa de madrugada, me fechava no quarto, pegava uma garrafa de álcool que sempre tinha em cima do meu guarda roupas e, com o conta-gotas que estava dentro da gaveta do bidê, após ficar mordendo um pedaço de pano, abria o orifício externo da uretra na ponta do “grandão”, e pingava o álcool nele. Pulando de dor e fungando dentro do quarto fechado, o barulho no assoalho de madeira era inevitável. Após muitos gritos da minha mãe perguntando o que estava se sucedendo, com o ardume aliviado, meio troncho e com o pano já fora dos dentes, eu respondia que estava fazendo “física”, e ela questionava: mas a essa hora da madrugada! Não fungue tanto para que eu possa dormir.
Contava ele também, naquele sábado pela manhã, que estava meio “zaroio”, pois além da saúde precária, tinha passado uma noite péssima e não conseguira dormir. Ele morava no Hotel Casa Verde, quase em frente da loja Comercial Bandeirante, no primeiro andar. Disse que, ultimamente, só conseguia dormir depois que o hóspede do segundo andar, que morava em um quarto localizado bem acima do seu, chegava, deitava na cama e, ao tirar os sapatos, derrubava no chão um pé e logo em seguida o outro. Toda noite era sempre o mesmo ritual, o cara deitava e derrubava os sapatos, um por vez e, somente após ele ter derrubado os dois pés do sapato, o amigo Guito conseguia adormecer. Só que naquela noite, o indivíduo chegou bem mais tarde, deitou na cama e derrubou somente um pé de sapato. E eu esperando que caísse o outro pé para conseguir dormir, e nada, disse o Guito. Fiquei a noite toda acordado esperando que o morador do andar de cima derrubasse o outro pé do calçado para eu pegar no sono, e nada, o outro pé do calçado não caía no chão. E não caiu. Em virtude dessa expectativa, fiquei muito ansioso e o sono se foi. Passei a noite toda sem pregar os olhos disse o Guito meio sonâmbulo e com a voz rouca. Pela manhã, prosseguiu o amigo, tomando o café com os olhos vermelhos parecendo um lobisomem, vi adentrar ao refeitório do Hotel Casa Verde, o morador do andar de cima, que fazendo uso de uma muleta apresentava um tornozelo engessado. Era por esse motivo, que o outro pé de calçado não caía no chão.
Para que o seu psicológico não ficasse afetado e lhe roubasse o sono nas noites seguintes, o amigo Guito acertou com o morador de cima, para que ele desse um jeito e também derrubasse o outro pé do calçado, se não fosse outro sapato, algo que simulasse o barulho ao cair no assoalho.
E, mais uma vez, no fim do causo, foi uma risada só… com alguns expectadores pedindo ao garçom que mandasse mais uma “gelada”, afinal aquele verão, mesmo pela manhã, estava de “matar”.
Texto publicado no Jornal Caiçara em 18/09/2020.