Na década de 1940, eu nem era ainda um projeto de gente e, após muitas primaveras vividas e hoje beirando o inverno da minha vida, tenho dificuldade em lembrar alguns particulares da minha infância, mas este, contado pelo meu avô, acontecido no final daquela década, não esqueci.
Em uma das portas de entrada do famoso “Cine República”, em frente da Praça Hercílio Luz, em Porto União, funcionava uma engraxataria, que por estar situada em frente à velha estação ferroviária vendia revistas, jornais e bilhetes de loteria, onde o movimento de pessoas era muito grande, também, porque ali se vendiam bichos, na linguagem de hoje, se bancava o “jogo do bicho”, liberado à época. Vou me ater a esse considerado jogo do azar, pois meu avô, vó, tios e tias apostavam diariamente uns trocados, para que no final da tarde ganhassem, mas, geralmente, batia na trave e, o dono da banca ficava faceiro. Também naquele local, era presença certa de craques dos tradicionais esquadrões do auge do futebol amador das cidades irmãs. Muitos deles à época, já andavam na ponta dos pés e com o peito estufado, como esse recém-contratado do quadro que tinha a alcunha de Perigo Serrano, da vizinha cidade de Canoinhas também situada no planalto norte catarinense.
A certo tempo, todo final de tarde, sentado em uma das três cadeiras onde os meninos engraxates exerciam os seus ofícios, o craque pisa manso, usando uma vestimenta de festa e cheirando almíscar, começou a marcar presença, pois cria ele, que todas as pessoas do sexo frágil que por ali passavam e não desadoravam fazer uma fezinha nos integrantes da fauna, dirigiam-lhe um olhar de atenção, elevando o seu ego. No auge do seu narcisismo, não percebera ele, que atrás de si, na parede, o dono do estabelecimento tinha colocado, estrategicamente, uma lousa negra, para diariamente, com um giz branco, registrar os últimos cinco números da loteria federal, o que lhe daria credibilidade nos resultados, bem como, o livraria de ter que responder sempre a pergunta: Que bicho deu hoje?
Naquele final de tarde já beirando a boca da noite, onde somente uma nesga de sol se fez presente e a noite seria de cerração, o movimento feminino estava maior que o normal, grande, deixando o janota pensar que estava abafando, até que, um trio de lindas moçoilas chegou à porta e fixando o olhar onde estava sentado o embonecado, melancólicas falam quase ao mesmo tempo: Perdemos! deu ele na cabeça, ao que fala em seguida o dono do estabelecimento: É minhas queridas, deu veado, 96. Tendo sido qualificado como um legítimo “veado-pardo” de corpo e alma, a ficha do fulano caiu, ao descobrir que não era para si que os olhares eram dirigidos, e sim, para a lousa negra, com exceção desse dia quando as moças falaram “deu ele”, onde o número 96 foi atrelado à sua pessoa. O bem-apresentado nunca mais foi visto por aquele setor. Dizem que se bandeou e foi pisar manso novamente lá pelos lados de Canoinhas.
Obs: Publicado no Jornal Caiçara em 28/02//2020.