O COBRADOR DE RUA

O COBRADOR DE RUA

Naquele barracão que tinha sido palco dos Jogos Abertos do Estado de Santa Catarina no ano de 1964, onde muitas pelejas de várias modalidades esportivas foram travadas, às quartas-feiras, nos anos iniciais da década de 1970, os funcionários do escritório de certa empresa de Porto União da Vitória, se reuniam para praticar o futebol de salão. Servindo como depósito de madeiras, naquele enorme barracão, a sua parte central fora deixada vaga para que ali fosse utilizada como quadra. Com as traves feitas de vigotes de pinheiro e as delimitações da cancha sendo pintadas, meio no grito, todas tortas, naquele chão de cimento bruto, os escriturários praticavam o esporte da bola pesada, põe pesada nisso. Diferente de hoje, a “Deusa Branca” era menor e mais pesada que as utilizadas na atualidade e, quando um litigante levava um tirambaço no corpo, tinha-se a certeza que as marcas dos gomos da bola ficavam carimbadas no seu “couro”.
Morador nas adjacências, ainda piazote e apaixonado pelo esporte bretão, eu sempre estava por ali, pois quando faltava um dos arqueiros era convidado para guarnecer uma meta, até porque, ninguém queria deixar seu “pelo” exposto sujeito a levar uma carimbada.
Aconteceu que o rapazote que fazia cobranças para aquela empresa, tinha arrumado um trabalho em um estabelecimento bancário, deixando aberta a vaga para contratação de outra pessoa. Foi aí, que recebi o convite para substituí-lo nas cobranças. Eles matariam dois coelhos com uma paulada só, supririam a vaga de cobrador e teriam, de forma oficial, um “mão furada” para defender o gol. Com o aval de um dos sócios da empresa fui contratado meio à revelia do chefe do escritório, um “Ser” que se julgava o todo poderoso na administração daquela firma.
Quase que assando a bunda, diariamente, sentado em cima do selim de uma velha bicicleta, cedida pela empresa, eu andava de canto a canto das cidades irmãs fazendo cobranças, entregando faturas e duplicatas para “aceite”. Por eu ter sido contratado sem o seu aval, comecei sentir na pele a perseguição, pois o “gerentão” começou a fazer de tudo para me prejudicar e para que me mandassem embora daquele emprego, ainda mais pela ciumeira, pois todos gostavam de mim e viviam me elogiando, principalmente, porque o dinheiro referente às cobranças aumentou, nunca ficando um devedor sem receber a minha visita.
Certa manhã de frio e de garoa fina, cheguei cedo no escritório e, como não tinha uma mesa específica para mim, afinal eu era um cobrador “de rua”, sentei lá fundo, atrás dos arquivos em pastas AZ, onde a minha presença não era fácil de ser sentida. Procurando o que fazer percebi que naquele local tinha um monte de bobinas de papel já utilizadas nas máquinas de somar e que deveriam ir para o lixo e, num lampejo de criatividade, tive a ideia de desenrolar bobina por bobina, uma por uma, e enrolar novamente com o lado utilizado para dentro, o que possibilitava que a bobina fosse reutilizada. Aos poucos os colegas de trabalho foram chegando e ao escutarem uma “buia” que fiz ao deixar cair uma bobina no chão, viram que eu estava sentado atrás daqueles arquivos.
Como sempre, por ser o único a não bater o cartão ponto, o “gerentão”, como de praxe chegou mais tarde. Passado uma meia hora de trabalho, não tendo noção que eu estava atrás daqueles arquivos, ele começou a falar mal de mim. Brabo, proferia palavrões contra a minha pessoa, de que eu era vagabundo, que só queria ficar na rua andando de bicicleta, sendo que tinha um monte de serviços como fazer uma limpeza atrás do arquivo e jogar todo aquele monte de bobinas no lixo. Se remoía incessantemente, perguntando, onde anda esse piá de bicicleta com esse dia de frio e chuva? Enquanto ele praguejava deixando claro que a autoridade dele estava sendo colocada em xeque pelo “cobrador”, trabalhando, normalmente, e, com as cabeças baixas para não deixar transparecer o sorriso, todos os demais no escritório, sabendo que eu estava trabalhando ali, escondidinho, aguardavam o desfecho para ver o focinho do chefão ao descobrir que eu estava no escritório e ouvira tudo o que ele falou.
Tendo ouvido todo o comentário sobre a minha pessoa, com umas quarenta bobinas recuperadas para a reutilização colocadas em uma cesta de vime, saí detrás daqueles arquivos e me dirigi até a sala de um dos donos da empresa, sala esta, que se situava ao lado da do gerente do escritório. Quando me viu passando, inesperadamente, pela sua frente, o gerente não soube onde colocar o seu focinho.
Ao entrar na sala do patrão fui inquerido por ele sobre onde eu estava, até porque ele tinha ouvido toda a reclamação do gerente metido. Disse-lhe então, que estava atrás dos arquivos tentando reaproveitar as bobinas das máquinas calculadoras que estavam sendo desperdiçadas, pois poderiam ser reutilizadas. Dei uma bobina para ele colocar na sua máquina de calcular para fazermos um teste. Me dando os parabéns pela iniciativa, levantou da sua mesa e me levou até a sala dos demais funcionários, e na frente de todos me elogiou, fazendo referências, também, às minhas cobranças, pois todos os devedores eram visitados com frequência. Enfatizou a economia que a empresa faria com o reaproveitamento das bobinas.
Resumindo esses escritos, virei um “peixe” do patrão, e nas gratificações que dava no meio do ano para todos os funcionários, ele fazia questão de me entregar o envelope com o dinheiro.
Por problemas de relacionamento, embora fosse um fulano muito competente, com uma promoção, aquele gerente passou a exercer as suas funções em uma filial, enquanto eu continuei como cobrador e como arqueiro mão de alface do time do escritório, até o dia em que fiquei cara a cara com o “pivô” de um time contrário. Ele desferiu um bimbada e a “Deusa Branca” teve como destino certeiro as minhas partes baixas. Deitado no chão, se cochando de dor, jurei para mim mesmo que nunca mais guarneceria uma meta. A partir daí comecei a mostrar as minhas habilidades com a bola nos pés.

Texto da matéria publicada no Jornal Caiçara em 01/05/2021.

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