Em um entrave preliminar, antes da contenda do esquadrão profissional daquela terra dividida por trilhos ferroviários, peleavam no palco verde do Estádio da Caixa D’água dois quadros juvenis. Sentado nas tribunas de honra do Estádio, o treinador dos profissionais assistia a peleja, e encantado, gesticulando, questionava aos demais diretores que também estavam por ali, se o Clube não tinha um “olheiro”, pois não acreditava que um menino-beque que estava atuando naquele prélio aperitivo tivesse passado despercebido, e não fizesse parte do elenco dos profissionais.
No intervalo daquele embate, descendo da tribuna, o treinador adentrou às quatros linhas por um dos tuneis de acesso e foi prosear com o piá. Fez “mil” propostas para levar o garoto, inclusive disse que também pagaria do seu bolso valor igual ao que fosse contratado, salientou ainda, te lapido e deixo os caixas, meu, teu e do Clube, cheios de “mufunfa”.
Após grande insistência do “treineiro” e muitas prosas com os pais, dissipando os medos, vendo que não tinha nada a perder, pois continuaria a estudar, aquele piá foi para a agremiação profissional. Ainda inexperiente de tudo, ele começava a se destacar nos treinamentos e já merecia uma chance nos titulares. Tendo como atributos a impulsão e o chute forte, quando se aproximava da intermediária contrária, se os contendores dessem moleza, um canudo saia dos pés daquele jovem, que arrematava com as duas pernas, e quando os arqueiros não iam buscar a redonda no fundo dos cordéis, obrigava-os a malabarismos para evitar que sua meta fosse derrubada. A cada dia, a cada treinamento ficava claro que aquele moleque-jovem tinha tudo para vingar como um grande jogador de futebol, era isso que se prenunciava.
Mesmo tendo a pressão da diretoria para que o piá fosse logo alçado ao onze titular, o treinador não o fazia, alegava que ele ainda não estava pronto e que quando fosse lançado, em poucas passadas renderia uma boa quantidade de níqueis para o Clube, pois dizia o comandante técnico que nunca errara nas suas avaliações, citando os nomes de vários craques que ele tinha descoberto.
Em preparação para o certame profissional daquele ano, um prélio amistoso foi acertado com uma agremiação amadora na cidade catarinense de Mafra. Antes do coletivo apronto, na sexta-feira, o piá-beque, foi avisado, que faria sua estreia no esquadrão titular no domingo e recebeu mais instruções do treinador. De tão faceiro que ficou, se dedicou ainda mais naquele treinamento e percebia-se facilmente o seu contentamento.
Com um elenco de cobras criadas, alguns craques, outros, como se diz no linguajar futebolístico, “meia-boca”, o desenlace daquela contenda, ainda mais contra um quadro amador era sinônimo de triunfo fácil, o que fazia com que a maioria dos boleiros não se esforçassem muito.
Viajando em um “busão” de primeiro mundo, com muito conforto, todos alegres, uns jogavam um carteado, outros faziam um batuque lá no fundo do corredor. Sentados nas primeiras fileiras e em poltronas conjugadas do mesmo banco, o piá que estrearia e um meia-cancha levavam uma trova descontraída. O craque da meiuca contava da sua vida de boleiro, das suas andanças, enquanto o piá confidenciava, que enfim chegara a hora dele atuar pela primeira vez no onze principal, mesmo que fosse contra uma agremiação amadora. Frisou ainda, que de tanta vontade que estava, iria arrebentar na contenda, pois estava com “a bola encalhada”.
Com aquele estádio catarinense totalmente lotado para assistir o grande e já famoso quadro do futebol paranaense, porque vários jogadores de “nome” vestiam o seu manto azul e amarelo, caso do arqueiro, que vindo de um dos grandes clubes da capital do Paraná andava pegando até sombra e, já estava acertando um contrato com o tricolor do Morumbi. Atrás da sua goleira estava apinhada de torcedoras somente para fitá-lo. Boa pinta que era, mexia com o coração da mulherada, tanto é, que dentro do vestiário o homem se produzia como ninguém. Usando um uniforme feito sob medida, chamativo, combinando com as luvas e chuteiras e, passando uma “glostora” nos cabelos, ao entrar em campo o guarda-metas era o centro das atenções, mas aí é que morava o perigo. Em jogos amistosos, em campos ruins e sem grama embaixo das goleiras, ele não se atirava para catar a redonda. Era uma verdadeira “máscara”. E, foi em dois chutes despretensiosos, ainda na primeira metade, do meio da rua, que o balão de couro beijou por duas vezes as malhas da sua meta.
No intervalo, dentro do vestiário, o treinador ia a loucura não admitindo estar perdendo para uns canelas duras. Deu a ordem para que o seu quadro atuasse bem avançado e sufocasse literalmente os mandantes. Não adiantou, pois o onze da casa atuando totalmente numa retranca, quase todos se defendendo de dentro da área grande, garantiram o escore e triunfaram por dois tentos a zero.
Após a refrega, durante o jantar em um clube daquela cidade, o onze profissional, de famoso passou por mero coadjuvante, pois a massa torcedora que passava por ali ia cumprimentar somente os “boleiros” do quadro amador.
Quanto ao piá que atuou pela primeira vez como titular, ficou no seu currículo essa derrota para um esquadrão amador, mas o que era bom para ele estava guardado. Estreando profissionalmente contra um dos grandes da capital do Paraná, foi um dos principais protagonistas ao quebrarem um tabu e vencerem aquele cotejo que ficou registrado nos anais da história do futebol paranaense. Mas como foi relatado, aquela derrota para o time amador estava registrada e, numa conversa entre amigos amantes do futebol, foi lembrada por aquele meiuca da época que contou o fato para o amicíssimo Carlos Senkiv, que num sorriso franco perguntou a veracidade do fato para o autor desta resenha, que de fato, assumiu que naquele cotejo ele não conseguiu “desencalhar a sua bola”.