Naquele domingo, no Estádio Mário Fernandes Guedes (Maracanã do Oeste), um cotejo muito esperado ia ser duelado. O tricolor Pó de Arroz, defendendo a liderança de forma invicta, litigaria com o vice-líder, o alvinegro Santista Bernardino. Pelo que vinham peleando naquela que era a melhor Liga da Federação Paranaense, seria um confronto de gigantes, sem prognóstico de triunfo, pois os considerados craques das cidades “xifópagas” faziam parte dos dois “onze”.
Já no início da tarde, transpondo os trilhos da ferrovia, a imensa torcida do alvinegro, que saíra de seu bairro na cidade do Paraná, já alojada no imenso barranco ao lado oposto da arquibancada, entoava o seu grito de guerra e fazia tremular os lábaros do seu esquadrão. Sentados na arquibancada e se aglomerando ao lado da pequena cerca que circundava o tapete verde, a grande massa do tricolor Pó de Arroz também fazia a sua festa. Do mesmo modo, entre aquele povaréu, seria um duelo magnífico. As emissoras de Rádio das cidades, com audiências maciças nos seus programas esportivos, davam ênfase total, inclusive fazendo promoções onde seriam distribuídos brindes para os torcedores e para o melhor jogador em campo. Enfim, tudo concorria para ser algo inesquecível, mas que também teria o seu ar de dramaticidade, que ninguém esperava.
O considerado melhor narrador de futebol de uma das emissoras, cerca de uma hora antes da peleja, alegando não estar passando bem, avisou a sua direção que não tinha condições de soltar a voz para narrar a contenda e iria para sua residência, o que gerou uma enorme correria, porque já naquele tempo ido, a briga de foice pela audiência era travada, constantemente. Sem o narrador oficial, como alternativa, verdadeira incógnita, foi colocado na frente do microfone um auxiliar da equipe esportiva que também era sonoplasta na emissora e, todos sabiam do seu enorme sonho em narrar encontros futebolísticos.
Como descrito que seria, a contenda foi um enorme duelo, um verdadeiro espetáculo. O narrador improvisado começava também a dar show no microfone, deixando alvissareiros os donos da emissora. Paralelamente, o cotejo e a narração estavam sendo de primeira grandeza, até que, em uma bola centrada na pequena área, o arqueiro do quadro Pó de Arroz socou a pelota e, na hora, o narrador “emergente” soltou no ar a pérola: o golquíper defendeu a pelota como se estivesse tocando um verdadeiro “punhetasso”, com o punho direito fechado e firme garantiu o seu pau. Diante das palavras do inexperiente narrador, percebeu-se as risadas manifestadas em todos os cantos do Estádio, onde muitos torcedores com seus rádios à pilha encostados nos ouvidos, ouviram a primeira gafe.
O jogo era muito disputado, embora as qualidades técnicas dos jogadores fossem excelentes, lances de muitas divididas também prevaleceram e os ânimos ficaram acirrados, até que um craque, figurinha carimbada por ter o pavio curto, ainda na primeira metade do tempo regulamentar, levou um chute no baixo ventre, perdeu as estribeiras, sendo mandado tomar banho mais cedo. No ato do fato, o narrador “inexperiente”, exaltado, comentou no microfone: o beque não podendo conter o avante deu um chute no saco dele, e pela cara feia que ele fez acho que acertou a “cabeça do seu pirulito”. Nova onda de risadas dos torcedores, pois só as duas gafes do narrador já tinham valido o ingresso.
Lá quase no final daquela rua, que termina bem em frente ao cemitério municipal da cidade paranaense, aquela mulher, usando uma capa de gabardine com a gola levantada cobrindo a metade do seu rosto, com os seus cabelos compridos, enrolados num penteado estilo coque, usava um chapéu bem fincado na sua cabeça, que sustentava um pequeno véu preto cobrindo inteiramente seu rosto, se esgueirando naquele início de tarde, a passos largos, disfarçadamente adentrava e percorria um corredor lateral àquela modesta residência e, lá nos fundos, após subir uma escada de madeira chegava ao sótão para se encontrar pela vez primeira vez com aquele narrador que tinha mentido que não estava se sentindo bem para narrar o prélio futebolístico. Aquele encontro já premeditado na primeira troca de olhares entre ambos, quando ela, estando junto com seu futuro noivo, craque de um daqueles times que litigariam naquele domingo, vislumbrou aquele narrador boa pinta e bom de papo. Naquela troca de olhares, um comichão corporal tomou conta da futura noiva e daquele homem da rádio, deixando a quase certeza, que aqueles corpos algum dia, numa junção carnal levariam as suas libidos à copa dos paus. Enquanto a pelota rolava no gramado do Maracanã do Oeste, aqueles dois corpos rolavam, um por cima do outro naquele pequeno quarto de sótão que era alugado para encontros amorosos, clandestinos. Usufruindo daquela belezura, o narrador também conseguiria mais um intento, se vingar daquele futuro noivo, jogador, que ao saber de um comentário seu durante uma certa peleja, tentou lhe dar uns safanões.
Sendo expulso da partida, aquele craque deixou o Estádio e rumou para a casa da noiva enquanto a partida prosseguia. Chegando lá, recebeu a notícia da mãe dela, que ela tinha ido ao campo para vê-lo jogar, o encontraria e voltariam juntos. Já com o adiantado da hora, prenunciando a noite que começara a chegar, ele foi embora, levando em conta que ela deveria estar na casa de alguma amiga. Ela estava, mas com o narrador, que devido a volúpia com que faziam amor perderam a noção das horas.
Na segunda-feira, uma reunião logo pela manhã foi realizada nas dependências da emissora de rádio, onde o narrador substituto teve a sua atenção chamada pelas palavras ditas durante a irradiação da contenda. Já se achando o tal por ter sido elogiado pelos torcedores e, não gostando do pito que levou, num tom áspero ele cantou de galo para com o dono da emissora. De imediato ouviu as palavras do patrão, mandando-o passar no departamento pessoal para pegar as “quireras” a que tinha direito, e que, sumisse dali, pois estava no olho da rua.
Sentindo que tinha se “achado” antes da hora, aquele auxiliar da equipe esportiva, sonoplasta e narrador de emergência, como válvula de escape correu até a residência do narrador oficial. Após ser recebido, sentado em um sofá na sala de estar, contou todo o ocorrido e, não deixando o narrador oficial falar, começou a ameaçá-lo, dizendo que sabia do “miguè” da doença de última hora e que ele fora se encontrar às escondidas com a futura noiva do craque que tinha sido expulso no jogo. Se não fizesse com que o dono da emissora reconsiderasse a sua demissão, ele poria boca no trombone.
Na parte da tarde, sem outra opção e com muito medo que aquele idílio viesse à tona, o narrador oficial, em reunião com o dono da emissora tentou demovê-lo da ideia de despedir o jovem sonoplasta e, que se fosse mantida a decisão, ele também pegaria o seu boné e iriam trabalhar em uma das rádios concorrentes. Empregado novamente, aquele sonoplasta, lapidado pelo narrador oficial, solidificou a amizade, e ambos, começaram a narrar tardes esportivas duplas, ao mesmo tempo, em dois Estádios. Marcaram época na radiofonia esportiva, já subiram, mas deixaram muitas saudades, até daquela futura noiva que ainda deve pisar por este chão e, talvez ao ler esta resenha, suspire fundo em uma lembrança daquele único libidinoso encontro clandestino.
Matéria publicada no Jornal Caiçara em 22 de outubro de 2021.