DO CASTELINHO PARA O MUNDO.

DO CASTELINHO PARA O MUNDO.

Naquela tarde, já indo embora a estação de outono do ano do bicentenário da Proclamação da Independência do nosso querido Brasil, palmilhava eu junto com meu neto Bernardo Getúlio pelas muitas veredas da nossa querida Porto União-SC. Entre muitas conversas e questionamentos do pequeno, cinco anos, deparamo-nos bem em frente ao casarão Castelinho, hoje Casa da Cultura Aníbal Khury. Vendo que eu ficara extasiado e olhava insistentemente do pé até a riba aquele prédio, meu neto me puxava pela mão como que exigindo mais atenção. Encontramos ali uma porta totalmente escancarada pelo lado da rua Coronel Belarmino, pois estava tendo uma exposição de quadros de artistas do Vale do Iguaçu. Após travar uma conversa com a secretária, tivemos a autorização para adentrar e observar as telas, bem como para passearmos por todos os cômodos daquele casarão. Descendo por uma enorme escada interna demos de cara com uma sala no andar térreo, e aí não teve jeito, tremendo dos pés à cabeça meus olhos marejaram e minha cachola voltou no tempo. Preocupado com o estado em que fiquei, Bernardo Getúlio me fitando intensamente perguntou:

– O que você viu Nono? Por que que ficou desse jeito?

Completamente emocionado e olhando para todos os lados, procurei me achar dentro daquela sala em meados da década de 1960, e respondi para o netinho:

– Quer ouvir uma historinha do Nono? Sente aqui junto de mim neste degrau da escada que vou te contar.

Sentados lado a lado, comecei a narrativa:
A situação do nosso querido Brasil era só de incertezas naquela década. Guardando uns parcos tostões ganhos nas confecções de roupas através da sua velha máquina de costurar, que juntados com outros ganhos pelo meu pai através dos cortes de cabelos e barbas dos fregueses que utilizavam os seus excelentes serviços, meus pais foram conversar com a famosa professora de datilografia, dona Ely, para ver a possibilidade, desde que ela baixasse o preço da mensalidade, me matricularem no curso de datilografia. Entraram em um acordo monetário, e na semana seguinte, após a aula da última turma da tarde eu iniciei o curso sozinho nesta sala do Castelinho. Diferentemente das outras aulas por ali, só estavam na nesta sala, eu, dona Ely e sua fiel companheira, a “buldoga” Astreia, que só de olhar já dava um cagaço. Rodeado por máquinas de escrever da marca Remington, a professora Ely disse que escolheu a melhor máquina para utilizar no meu aprendizado e, com um olhar severo deixou bem claro, que se eu não seguisse os seus ensinamentos, a sua enorme cachorra buldogue lhe avisaria latindo, bem como poderia me tirar lascas com seus enormes dentes. Odiando a professora e quase freando na minha calça curta, com muito medo daquele enorme animal eu iniciei o aprendizado. Primeiramente ela começou a me orientar como deveria me posicionar em frente da máquina de escrever. Mostrou o seu funcionamento, suas peças e me ensinou como trocar as fitas de tinta e seus ajustes. Me ensinou com calma, detalhe por detalhe, e quando demos por nós, já tinha passado uma hora de aula e o dia tinha virado um breu. Antes de me dispensar para ir embora, se posicionando de frente colocou as suas mãos nos meus ombros, e olho no olho, deixou bem claro ao dizer: menino! Você tem que aprender a datilografar sem olhar as teclas. Algumas vezes não vou estar aqui para fiscalizar, mas se você tentar me enganar, a Astreia vai latir, e se você continuar ela vai te avançar e te morder. Cuidado!
No dia seguinte, com o olhar fixo somente no texto da folha posicionada ao lado esquerdo da máquina, as letras ASDFG começaram a ser impressas e foi a primeira aula prática que tive. Sem nunca olhar para as teclas, mesmo a professora Ely não estando por ali, o medo que eu tinha da cadela Astreia fazia com que executasse à risca o solicitado. Não nego que após várias aulas, algumas vezes tentei olhar para o teclado da máquina, mas fui dissuadido, pois o forte rosnar daquela buldoga era assustador. E foi assim, nestes termos que ao final de noventa dias o curso terminara. Todos os alunos das turmas que iniciaram o curso na mesma época fariam uma prova final juntos, inclusive eu. Em pé, atrás dos alunos, encostada naquela parede ali, ladeada pela cachorra Astreia, antes que fosse acionado o cronômetro para o início, a professora Ely pediu para que eu me levantasse pois estava me dispensando de fazer a prova. Me deu o diploma e me mandou para casa, tugindo ao meu ouvido que nenhum daqueles alunos estava tão bem preparado como eu.
Engraxando sapatos na barbearia do meu pai, vendendo dolés pelas ruas e entregando jornais nos finais de semana eu conseguia uns trocos que entregava à minha mãe para ajudar nas despesas em casa. Não sei como, acho que do Céu me caiu um serviço de cobrador de ruas e tive o primeiro registro em uma carteira profissional para menores de idade. Bom no pedal, com uma velha bicicleta cedida pela firma eu executava o meu trabalho não dando folga para os devedores. Em um certo tempo, época de faturamento e fechamento do mês na empresa, um dos funcionários do escritório adoeceu. Vendo os demais colegas sobrecarregados de trabalho e como estava com as cobranças em dia, eu ainda piá de tudo, me ofereci para ajudá-los. Questionado se sabia “bater máquina” humildemente eu disse que mais ou menos. Lembro que alguns deles de forma sarcástica sorriram. Tentando tirar um sarro, me colocaram à disposição uma máquina de escrever e ao lado empilharam um calhamaço de notas fiscais. Como já era próximo da hora do almoço, alegres, todos se preparavam para ir para as suas casas, não sem antes, às gargalhadas, deixarem bem claro para mim que no final da tarde aquelas faturas e duplicatas referentes aquelas notas fiscais deveriam estar prontas.
Não fui almoçar naquele dia, e no início do expediente da tarde ao retornar para o trabalho, o chefe do escritório foi surpreendido com todas as faturas e duplicatas já prontas sobre a sua mesa. Estupefato pelo feito, chamou todos. Rodeado por todos os funcionários do escritório fui colocado à prova quando me deram vários memorandos para bater. Entusiasmado, eu dedilhava numa ligeireza aquelas teclas da máquina de escrever marca Olivetti e realizava a tarefa rapidamente. Inquirido do porquê de não ter contado que sabia datilografia, respondi que nunca tinham perguntado e afinal, eu fora contratado para ser um cobrador de rua. A partir daquela tarde, além de cobrador eu passaria a fazer parte efetiva do escritório e receberia uns tostões a mais. Me especializei na parte contábil e departamento de pessoal. Anos mais tarde me formei em Contabilidade.
Ao contar essa história para o meu neto, aliás narrando num palavreado que conseguiu a atenção total dele, não percebi, que lá em cima no primeiro andar, no acesso daquela enorme escada, também sentada, uma das artistas que estava expondo os seus quadros ouvira toda a narrativa. Ao perceber que fora vista, suspirando forte me dirigiu a palavra, pediu desculpas por ficar na espreita ouvindo, salientando que dentro daquelas paredes muita gente deveria ter aprendido e dado os primeiros passos em uma profissão. Pensando no que aquela artista falou, hoje sentado na frente do meu notebook para escrever esta crônica, percebo de forma clara que o tempo às vezes se torna cruel, ele vai minando as resistências físicas e não se tem como lutar contra. Nos dias atuais, encontrando dificuldades em me movimentar e postergando a substituição de um joelho, com artroses nas articulações, principalmente nos dedos das duas mãos, eu, que fazia “chover” no teclado de uma máquina de escrever, hoje, como que catando grãos de milho encontro dificuldade até em usar um teclado do computador. Não sendo um profeta antevejo que os meus dias de escritor vão ficar cada vez mais difíceis, mas eu não me entrego. Não vou jogar a toalha nunca. Até quando vou lutar não sei. Mesmo com dor, os meus dois futuros livros já foram redigidos com muitas dificuldades, e se ELE permitir, ainda este ano estarão na praça.
Com as mãos sempre contristadas, sou só gratidão ao Papai do Céu.

Texto publicado no Jornal Caiçara em 23/09/2022.

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