Do escritor da periferia – Craque Kiko.
O Bruxo arrumou o balão na marca designada. A falta era risco de tento, perigosa. A barragem humana na distância prevista, tentava se adiantar e pulava para tirar a possibilidade de o balão ir por cobertura na gaveta. O juizão teimava, incontinenti – coloque o balão no lugar. O Bruxo argumentava – está só um tiquinho fora da posição marcada. No seu íntimo ele pensava – que diferença faz, um tiquinho para cá ou para lá. O balão sabia onde seria enviado e dormiria. Ele passaria pelo lado de fora da barragem, adentraria pelo ninho da coruja e ninaria, manso, no fundo das malhas.
Trilo dado, ouviu-se o chuá, barbante esticado. O arqueiro nem se mexeu. Nem adiantou a barragem pular e se adiantar. Batendo com a chapa do pé, a curva foi perfeita pelo lado de fora da barreira. No canto oposto do guarda-metas. Tento indefensável. Mais um lance do Ronaldinho Gaúcho, o Bruxo, para não ser esquecido e assistido. Os vídeos estão circulando por aí.
Guardando as devidas e muitas proporções, vendo e revendo este lance, um imenso saudosismo bateu em mim. De quando ainda era um chutador. A falta foi quase na mesma posição em um tapete verde lá para os lados do Sudoeste/Oeste paranaense. A barragem humana contrária, estava apinhada de boleiros. Posicionados na distância conforme a regra, eles tentavam se adiantar e pular. A bola estava no lugar? Ainda não. Eu fingia que ela estava. Em pé, frente dela, esperei o arqueiro conferir a barragem. Quando ele se deslocava para a posição onde aguardaria o arremate, usei da malandragem. Sem que ninguém visse, como um raio, desloquei o balão um tiquinho para fora da barreira. Contrário ao Bruxo, para mim fazia diferença, nunca teria a qualidade dele. Aquela mudança de posição do capotão, por mínima que foi, aumentou meu ângulo de chute.
No trilo do referee, senti, que mesmo com a minha malandragem o meu anjo da guarda não tinha me abandonado. Só foi bater de chapa e com efeito para escutar o chuá, ver o barbante esticado e o balão morto no fundo da cidadela. O guapo imóvel parecido uma estátua, contemplou, revoltado. O tento consignado foi o do título, o maior deste chutador meia boca, mas malandro, esperto, vivo.
O paralelismo das narrações acima, é de veracidade, embora na época do meu feito, o Bruxo estivesse com apenas quatro anos de idade. A verdade sobre aquele tento, foi lembrada há cerca de dois anos, quando retornei para aqueles lados onde fui metido a boleiro. Era um encontro dos ex-chutadores que passaram por aquele chão. A terra tinha girado por quarenta anos. Conversa com um, proseia com outro, abraço chinchado daqui e dali, lágrimas já aos montes.
Adentrou ao salão um senhor empurrado em uma cadeira de rodas. Não o tinha na lembrança. Com os cabelos brancos igual neve pura, usando óculos fundo de garrafa – ele aparentava andar beirando uns cem de vida. Com a voz rouca e fraca, falando alto tentando ser ouvido, ele perguntava:
– Onde está o Kiko. Onde está o Kiko. Kiko, Kiko, Kiko …
Um silêncio se fez e as pessoas foram abrindo caminho até mim. Frente a frente, aquele senhor desandou em um choro quase incontrolável. Pediu um abraço. Me inclinei e ainda sem saber porque, também emocionado, dei e recebi um apertado abraço, demorado. Me fitando, aquele senhor iniciou um relato:
– Naqueles tempos eu tinha perdido a minha companheira de vida. Nada mais tinha sentido para mim. A tristeza e a clausura começaram a habitar no meu ser. Tentando me ajudar, meus filhos para me tirarem um pouco da fazenda, começaram a me levar para cidade aos domingos para assistir os jogos de futebol do esquadrão local. Desde o meu primeiro bisoar em você, virei teu fã. Gostava da tua raça, do teu vigor físico, e nunca vi você desistir em um lance, nem quando já estava botando a alma pela boca, esgualepado. Acompanhei de perto tuas belas atuações, também, os teus fiascos. Me punha na tua pele quando você ia tomar banho mais cedo por uma jogada viril. E, olha que foram várias vezes. Também! Em doze anos te assistindo por estes lados, até que, foram poucas chuveiradas, falou sorrindo. Ainda com sorriso na feição, pegou a camisa que trouxera. Pediu se eu lhe daria a honra em autografá-la. Disse que aquela camisa eu lhe tinha dado, após aquela contenda decisiva em que eu fiz o tento cobrando a falta. Como um estalo na ideia, lembrei como uma nitidez recente, pois aquela pessoa a quem dei a camisa na grande final, era o torcedor que de forma velada, todo pós jogo mandava que entregassem na minha morada, ás vezes, um pernil de um leitão, um quarto de carneiro, pato, galinha, até mesmo, parece mentira, um charque de carne de anta. Isso, quando não afrouxava os cordões da sua burra, para me mandar uns “merréis”, o que me ajudava muito por ser um boleirinho barato e que às vezes era chamado de fila boia. O entregador dizia que era presente de um fã que não tinha motivos para se identificar. Mas, sem nunca ter conversado com ele, eu imaginava quem era.
Agora quem chorava, de balde, era eu, meio entorpecido também, pela imensa salva de palmas naquele salão lotado. Ainda bem, que a minha parceira de vida, como sempre, estava ao meu lado. Foi muita emoção para este ex-chutador meia boca, que agora, pelo gosto, se entregou à escrita e contou essa história.
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