Tendo o nosso campinho ficado com o tamanho reduzido devido a parte da grama ter sido retirada e levada para o campo do Ferroviário, o futebol de travinhas livres já não tinha mais espaço para ser jogado. Fizemos então uma trave grande e começamos a jogar “campeonatos”, onde o jogador dava três chutes contra um goleiro adversário e, após, ia defender três chutes que seriam dados pelo goleiro. Quem fizesse mais gols seria o vencedor e continuaria disputando, já contra outro adversário. Quem perdesse, ficava esperando que todos jogassem, até chegar novamente, a sua vez. O macete era ganhar para jogar mais e eu, como já tinha um chute considerado forte para a minha idade, quase sempre ganhava, além de que também tinha o dom de defender.
Para ter uma emoção maior e imaginar estar jogando em um campo oficial, alguém deu a ideia de colocarmos uma rede na trave. Meio a contragosto, meus pais presenciaram a queima de pneus velhos, cujos arames eram retirados para que fizéssemos a dita rede. Feita a rede no capricho e com detalhes iguais aos das traves do Estádio Municipal de Porto União (Conhecido como o Maracanã do Oeste), surgiu o imbróglio: qual dos piás iria fazer o primeiro gol e quem iria defender pela primeira vez. Não lembro quem inaugurou, só sei que todos os dias, após as aulas, a piazada da redondeza se reunia e era aquela alegria para disputar campeonatos no campinho do Barbeirinho (Eu, filho do barbeiro Acir).
Certo dia, quando disputava um campeonato com o menino Darci Bocudo, vi que um rapaz ficou ao lado, na rua, nos observando e, entre um campeonato e outro, o rapaz se dirigiu até mim e perguntou se eu não queria ir treinar no Ferroviarinho, time que jogava no campinho onde hoje é o SESI de União da Vitória, campo já famoso por ter um poste de trilho no meio e um valetão em uma das laterais, por onde escorria o óleo retirado das máquinas do trem, que sofriam manutenção na oficina da Rede Ferroviária. Vários meninos bateram a cabeça naquele poste, caíram ou foram derrubados no valetão. Disse, ainda, o rapaz que, por eu ter um chute forte e agarrar bem, poderia arrumar uma vaga na linha ou no gol. Aquele rapaz, que mais tarde fiquei conhecendo como Tarzan, treinador do Dente de Leite do Ferroviarinho, foi quem me deu a primeira chance de jogar futebol em um campo de verdade, pois lembro muito bem que, sentado ao lado de um dos túneis de acesso ao gramado do campo do Ferroviário Esporte Clube, quando ele escalava os dois times para um treinamento, faltou um beque no time reserva e ele se dirigiu a mim, perguntando se, mesmo com aquele tênis Conga que eu estava usando, eu colaboraria para jogar de beque central. Assenti que sim. E disse-me, ainda: Piá! Não deixe passar nada na defesa, chute tudo. E eu chutei tanto que, no intervalo, ele me colocou para treinar no time de cima. Daquele momento em diante, além de titular, passei a ser o capitão do esquadrão e, naquela noite, de tanta excitação e alegria, o sono não veio. A partir dali, também comecei a conviver com os meninos filhos de ferroviários que, devido ao melhor poder aquisitivo de seus pais, estudavam nos melhores colégios da cidade e eram todos com boa formação, o que influenciou muito na formação do meu caráter, pois o meio onde você vive tem grande chance de te moldar.
Objeto de gozação da piazada por jogar de Conga, porque chuteira, para mim, era coisa nunca vista, o Tarzan conseguiu, com o guarda esporte do Ferroviário Esporte Clube, uma chuteira velha na minha numeração. Só que a referida chuteira necessitaria de um conserto porque, na ponta do pé direito, estava faltando um pedaço de couro e os dedos ficavam para fora, além de que as travas estavam bastante gastas e não davam nenhuma firmeza. Com os trocados ganhos pelas engraxadas de sapatos e serviços, como ir em uma bodega comprar cigarros para os vizinhos, a chuteira foi levada até o sapateiro para os devidos consertos. O sapateiro colocou uma ponta nova de couro, bem reforçada, ficando a mesma com um calombo, mas eu não me preocupei com a estética, até porque, ao bater tiro de meta, o chute preferido era a bicuda, a bola saia zunindo. Quanto à firmeza em campo, foi dada pelas travas novas, feitas com rodelinhas de couro, pregadas uma em cima da outra. Recordo-me que, devido a intensa utilização da chuteira, as rodelinhas de couro foram desgastando, ficando aparecendo as cabeças dos preguinhos que, dependendo dos atacantes adversários, além da firmeza em campo, deixavam marcas nas canelas deles. Virgem nossa, afinal, beque tinha que “chegar junto”.
Texto retirado do livro Apócrifos da Biografia de Um Desconhecido, de autoria do Craque Kiko.