Do escritor da periferia – Craque Kiko.
Eles eram de missa, mas a vida do casal seguia quase um inferno. Incompatibilidade de gênios fofocavam os vizinhos. Para não mudar a rotina, naquele dia descambou mais um quebra pau. Já noite adentro, desassossegado, a pé, ele rumou para o centro antigo da cidade. Pensativo entrou em um barzinho, encostou o umbigo no balcão e constatou que às vezes é importante ter um balcão de bar à frente. Tomou dois dedos de conhaque e entornou uma cerveja inteira. Pela vez primeira criou coragem e enveredou para um puteiro. Afrouxou o bolso. Dormiu acompanhado e tomou todas por lá. Gastou até o que não tinha.
Clareando o dia ele chegou em casa. Foi recebido aos gritos no portão. Ela parecia estar endiabrada. Criou um reboliço danado. Ela falou logo de pancada para que ele azulasse o pé dali. Que pegasse o seu auto com as trouxas que já tinham sido colocadas dentro, e armasse a capa para nunca mais voltar. Até com medo de levar um cacete, ele abriu a porta traseira da Belina e constatou, que além de umas poucas mudas de roupas, um cobertor com a cor fenecida pelo tempo e sua televisão 14 polegadas estavam entrouxadas no banco traseiro. Sem dizer uma palavra sequer, com o coração partido, antes de sair, viu seus dois filhos bombiando escondidos por trás da cortina de uma janela. Atinou ele, iria para nunca mais voltar. Vinte anos de junção estavam indo para o brejo.
Com os bolsos já beirando a ficar só com o pó, alugou uma meia água, pequeno quarto com um banheiro, próximo ao seu local de trabalho. Depois da lida diária retornava para seu quartinho e não mais saia. Sozinho ali, se encarava no espelho como querendo encontrar sua alma. Sentia um silêncio de assombro, sua alma estava deserta.
Sentindo muitas saudades da agitação das crianças, quando não estava assistindo televisão, orava pedindo a proteção do Ser Superior, para que lhe desse coragem e paciência para suportar aquele momento. Sempre com as vistas molhadas, pedia forças para não se render a um balcão de bar. Não se rendeu. Começou a superar. Se entregou de focinho ao trabalho. Prosperava, dia a dia. Sua conta bancaria estufava a passos largos, mas continuava morando no mesmo quartinho.
Era um 19 de junho. Batia ele pernas pelo centro da cidade. Antes de parar em frente da vitrine de uma loja de roupas, percebeu uma mulher atraente vindo em sentido contrário. Seus olhos se procuraram. Gastaram um tempo comprido se fitando. Ela lhe dirigiu a palavra:
– Porque tens as vistas tristes?
Surpreso, e a queima roupa, tentando atrair mais sobre si a feição dela, ele lhe respondeu:
– Estão tristes, mas buscando a felicidade.
Pois, eu também tenho buscado essa dita felicidade – disse ela.
Sorrindo, papeou ele – quem sabe você ache em mim.
O papeio de início foi longo.
No segundo encontro, após comerem um pacote de pipocas, ele a convidou para ir até a sua casa. Ela foi até o quartinho dele. Não se fez de rogada, assistiu com ele na televisão 14 polegadas. Chegaram um no coração do outro. Ficaram desarmados. Juntaram os corpos. Juntaram os trapos. Se deram bem na fita. Felizes, prosperaram unidos.
Em cinco dezenas de anos vivendo amasiados, além dos filhos, também foram presenteados com uma emoção nunca sentida, pois não podiam partir deste chão sem ter e sentir a alegria desse negócio chamado neto. Na pandemia partiram quando assistiam televisão, naquela de 14 polegadas.