Do escritor da periferia – Craque Kiko.
O movimento na barbearia estava fraco. Cubando o meu pai pelo o canto do olho direito, sentado próximo da alta porta de entrada eu limpava e ajeitava os ingredientes da minha caixa de engraxar sapatos.
Após ter amaciado o fio da navalha Bismark Solingen naquele pedaço de couro esticado por sobre a penteadeira, meu papai deixava ela em condições de cortar rente, por mais que cerrada fosse uma barba.
À época, um fumante inveterado, meu progenitor preparava o seu paieiro. Com as palhas de milho já aparadas no tamanho desejado, ele, com seu não pequeno canivete, picava um pouco de fumo em corda. O famoso fumo “amarelinho”. O excedente daquele fumo picado era guardado dentro de uma pequena latinha. Àquele a ser usado, de momento, era desfiado e passava por uma peneirinha. Espalhado aquele fumo por sobre a palha esticada, ela era enrolada. Como acabamento, após passar aquela palha por sobre os beiços e língua, ele cortava a ponta onde iria pitar. Na outra ponta, com o seu avio colocava fogo. Fazendo a vez de um freguês, sentado na cadeira de cortar cabelos, ele a inclinava para trás, e se deliciava em baforadas. E, eu! Como dito no começo, só cubava ele, da chanca ao topete. Só no presenciar aquela rotina, se preciso fosse, eu faria um paieiro em um piscar de vistas.
Algumas vezes, dependendo da necessidade e da minha ociosidade, sempre sentadinho ao lado daquela porta, na esperança que algum freguês desse o ar da graça para também engraxar um pisante, meu pai perguntava se eu não queria ir até a bodega próxima. Eu entendia no ato, ficava numa faceirice só. Ele me dava uns trocados, eu comprava um pé-de-moleque para mim e uma cocada para ele. O meu pé-de-moleque era dividido com meu irmãozinho, três anos mais novo que eu. A cocada seria dividida com minha mamãe, ela adorava. E assim seguia a vida na barbearia. Dias cheio de fregueses, dias sem viva alma.
Num dia sem uma viva alma por ali, era o meu pai que me cubava, percebi. Tentei atinar no que ele deveria pensar. Imaginei ele pensando que o seu mais velho, ainda um tiquinho de gente, logo, logo, estaria criando pelo no saco. Seria crescido. E, já era bom de bola. Faria jus ao nome.
Já tinha ouvido o meu papai falar para uns amigos, que o piá faria jus ao nome. Não entendia. Naquele dia de ociosidade, me enchi de coragem e perguntei o porquê de ele falar para os amigos que eu faria jus ao nome. Silva tem a dar com os pés por aí. Respondeu-me ele:
– Kikinho! Vou te contar uma historinha. Desde os tempos na Lapa, quando o teu avô, um gurizote ainda, levava nos lombos de um cavalo, balas para os revolucionários, ele já nos honrava com o sobrenome Silva. Continuou o meu papai:
– Eu, já rapazote e de botuca na tua mamãe, lá pelos cantos de Felipe Schmidt, durante as noites municiando os fornos com lenha para a queima dos tijolos no olaria do pai dela, no pé do rádio, sintonizando as emissoras de São Paulo e do Rio de Janeiro eu ouvia a narração dos prélios do Vasco da Gama. Num tempo em que o Vasco ficou conhecido com o Expresso da Vitória, pois o esquadrão já gorjeava vitória antes do fim do tempo, o craque Jair da Rosa Pinto fazia chover dentro do relvado, fazia e acontecia. Em homenagem a ele e a você, te dei, com a afirmação da tua mamãe, o nome de Jair.
Depois daquele papo com meu papai, além daquela relação de pai e filho, ficamos amigos de paleta. Hoje, neste dia, não obstante o tempo, reinante e com um frio danado, um nó quase tapou minha garganta. Me bateu uma baita saudade da minha amada mamãe e do meu amado papai. Senti algo que não era ruído, senti um silêncio na alma. Vi o quanto não somos nada. Tudo se vai. Então, escrevi este texto, que se fosse em uma folha de papel, certamente estaria manchada com as minhas lágrimas.