FIM DOS TEMPOS.

FIM DOS TEMPOS.

Tendo secado a quirera, aquele corpo “carnal” daquele boleiro, ao pó retornaria e jamais adentraria, novamente, às quatro linhas para pelear. Como estivesse se equilibrando e balançando entre as nuvens, a alma daquele cadáver jogador de bola o deixava, parecendo que subia para o julgamento final. E na boca da noite ela, a alma, se viu andando em terra alheia, no meio de uma mata fechada, quando escutou o grito de um “urutágua”, pressagiando coisa ruim. Tirou o chapéu avudo e olhou para mais alto, e como que pedindo proteção benzeu-se fazendo o sinal da cruz. Com o “fiote” estrangulado de medo, ela saiu do mato entrando numa tiguera e logo em seguida num chão-parado. Na dianteira, no sopé do monte mais elevado visualizou uma resplandescência como se fosse uma aurora boreal. Chegando às esporas na paleta daquele matungo meio domado, acelerou o trote e, ao se aprochegar deu de cara com uma tapera veia, que, como se fosse uma estrela solitária, contrastando com a imensa negritude daquela noite horrível, era de uma claridade total. Se tocaiou atrás da cerca de frechames de canela guaicá, bisoiou por entre uma pequena janela, e viu lá dentro, sentado ao lado de um pequeno trono, um moreno, de porte atracado, tirando baforadas de um cachimbo e sugando uma erva apojada numa baita cuia. Pé por pé, sem conseguir camuflar o tilintar das esporas ao tocar em terra, ela foi se achegando perto da tapera. Sogou o matungo naquela trave e, meio com medo, curiosa, deu três toc, toc, toc naquela enorme porta quase caindo. Aquele ser negro ao abrir a porta, logo de cara foi inquerido pela visitante – que lugar é este, onde estou? – Você finou na terra, está agora na porta do Supremo Céu para ser julgada e eu sou São Pedro – Mas um São Pedro preto! Balbuciou a alma – Quem lhe disse que eu era um branquelo, respondeu aquele que dizia ser Pedro. Por causa dessa sua discriminação e racismo você vai para o julgamento já com um ponto para sua condenação, disse o porteiro do Céu. Continuando a conversa em frente à porta, disse São Pedro – Vou lhe dar duas opções de julgamento, um com um voto monocrático ou três votos da primeira turma, você tem livre arbítrio para escolher. Adianto-lhe, monocraticamente, você será julgada pela ministra cara de defunta mal assombrada ou por um colegiado dos três todos poderosos da corte, o Girmar, o Levinha e o Torfólio. Percebendo, que ao verem a sua ficha corrida seria condenada de forma unânime, principalmente, por sempre se opor ao partido vermelho, desesperada, virou as costas deixando São Pedro falando sozinho e saiu numa corredura só em direção ao seu pangaré. Soltou as rédeas da trave, num pulo certeiro caiu sentado no lombo, desceu o reio e numa troteadeira total do chucrilho armou a capa fugindo dali. Já galopando há bastante tempo, toda suada, sentiu-se em pleno voo e que iria esborrachar o focinho no chão, quando o animal redomão ao pisar com uma de suas patas dianteiras em um buraco deixado por um tatu, lançou-a ao ar. Foi nesse instante, que todo suado, em cima do seu catre, aquele vivente boleiro acordou daquele sono sinistro e desferiu um longo suspiro de alívio. Mas, olhando pela janela ao lado da sua alcova, percebeu o dia pálido e borralho, parecendo um cair das trevas, com as pessoas tristes e cabisbaixas. Se deu conta que tinha acordado para o inferno da pandemia, onde já tinha testemunhado que o maldito vírus tinha levado muitas pessoas queridas e que não pararia por aí, sendo muito difícil contê-lo.
Contrito e tendo feito suas rotineiras rezas onde agradecia e pedia ao Pai Criador pela piedade aos seres humanos, aquele ser ainda vivente, meio dia e pouco levantou e, como de costume ligou a televisão para saber das últimas notícias. Como sempre, no tempo de agora, estava passando a coletiva diária do Dórico “carça apertada”, que insistia em fechar tudo e culpava o Borso pela mortandade nessa terra varonil. Não aguentando mais assistir aquelas coletivas, desligou o tubo de imagem e acessou as redes sociais, onde em mais uma live, o Borso descia o porrete no Dórico e como palavra de ordem dizia que para se salvar do bicho vírus era para ingerir antes de ficar doente o remédio para piolho e sarna, ficando evidente que o duelo não era para salvar vidas, mas com fins eleitoreiros. Diante desse fogo cruzado pelo poder, e pelo “novo normal” que agora tem que ser implantado na vida de cada um, uma dúvida começou a martelar na massa encefálica do vivente. Será que se aquele sonho fosse realidade não teria sido melhor e, afinal, mesmo por mínimas chances ele poderia ser absolvido e ir para o Céu. Se fosse condenado, ainda teria recursos, e na pior das hipóteses, através de um embargo declaratório, adiaria a queimação pelas labaredas, pois muitos tinham conseguido tal intento, mas daí lembrou, nunca tinha sido presidente.

Matéria publicada no Jornal Caiçara em 06/04/2021.

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