HISTÓRIAS DO CRAQUE KIKO – 26 – UM PECADO CAPITAL.

HISTÓRIAS DO CRAQUE KIKO – 26 – UM PECADO CAPITAL.

Coisas da bola

Coisas da bola são relatos de fatos vividos por mim, histórias contadas por amigos e outros frutos da minha imaginação.

Qualquer semelhança será puro acaso.

“Jair da Silva Craque Kiko”

As coisas não iam bem naquela sociedade. Desavenças de todos os lados, todo mundo tentando passar uma rasteira no outro, brigas políticas nem se fala, eram corriqueiras, pois a gana pelo poder ia além da ética e da moral. Enfim, aquele povo estava fadado a viver no atraso, eram governados ainda na base do cabresto. Uma xixada aqui ou acolá era sinônimo de voto contado. O rumo daquela sociedade variava muito pouco independente dos dois clãs que detinham o poder político, onde a alternância entre ambos, quando havia, nunca significava melhora.
Contrariando algumas poucas desavenças e interesses pessoais, via-se quase que diariamente, um padre, um maçom e um rabino reunidos em uma amizade que chegava a dar inveja. Sempre levando uma trova sobre os acontecimentos do dia a dia, na hora da cachaça e nas poucas reuniões de obras sociais, que tinham pouca participação efetiva da população e de seus governantes locais, a não ser perto das eleições, eles deixavam transparecer o tom fraterno no relacionamento.

Em um tempo incerto, durante um papo de boteco, quando já tinham “molhado” muito a palavra, tomado umas a mais, um deles, não lembro quem, aventou a hipótese de se fazer alguma coisa para tentar mudar aquela situação e unir as pessoas em torno de um bem comum. Várias ideias foram ventiladas, mas nenhuma parecia ter força suficiente para agregar aquele povo como eles queriam. Se fingindo de sonso e tentando demonstrar que não estava nem aí para o papo dos três, o garçom, dono do bar, estava de butuca na conversa e, sem perceber soltou uma “peruada” quando de sua boca saíram as palavras, numa pergunta: por que não fundam um time de futebol? Um silêncio estranho, quase tétrico, tomou conta do ar por bom tempo. Cada um dos três, em seu íntimo, deglutindo goela abaixo o que o bodegueiro tinha falado, ruminavam internamente procurando analisar a ideia. Passados alguns minutos, quase que falando ao mesmo tempo, os três encerraram aquele silêncio imenso com as palavras: grande ideia. Como a prosa se alongou, passou o horário do bodegueiro fechar o seu estabelecimento, indo o papo até madrugada adentro. Os três amigos saíram dali com o firme propósito, iriam alvoraçar aquela comunidade, seria a maior revolução social até aquela data e, não teria as mãos políticas dos clãs dominantes. A ideia do homem da bodega veio a calhar, mas aos poucos ficou evidenciado que a inveja e a vontade pessoal, de cada um, preponderava fortemente. A primeira divergência foi no nome da agremiação futebolística, pois cada qual queria que vingasse a sua sugestão. O padre queria que a agremiação se chamasse Católica F.C. O maçom exigia o nome de Maçonaria F.C. Já o rabino defendia que fosse Judaica F.C. Após um mês discutindo não tinham chegado a um denominador comum, ninguém conseguia abrir mão da sua intenção, até que o Rabino, vendo que o negócio ia ficar só no papo, sugeriu. O nome do esquadrão deveria ter as duas primeiras letras do nome reivindicado por cada um. Todos se olhando nos olhos, pensando alguns segundos, concordaram, mas novamente um impasse, com qual letra começaria? Agora foi a sugestão do padre que vigorou no ato. Seria decidido no par ou ímpar. Após o torneio em dois turnos de par ou ímpar, prevaleceu o nome de JUMACA F.C., pois o vencedor foi o Rabino (JU de Judaica) ficando o Maçom em segundo lugar (MA de Maçonaria) e consequentemente o Padre na lanterna (CA de Católica). Decidido que o nome da agremiação seria JUMACA F.C, tinham agora que escolher o escudo e, mais uma vez, reunidos naquela bodega os interesses pessoais voltavam a prevalecer. O maçônico, quase que exigia que fossem bordados nas camisas um esquadro e um compasso. O sacerdote, brigava para bordarem uma cruz. O da sinagoga não deixava por menos, queria a Estrela de Davi. Como as discussões varavam madrugada a dentro, novamente dando uma de “migué”, o bodegueiro que se fingia de bobo e ouvia tudo calado, não se aguentou e abriu o “jacaré”: coloquem os três escudos nas camisas. Após mais dois meses discutindo, bateram o martelo e decidiram que bordariam os três escudos, um de cada instituição.

Definidos o nome do time, bem como os escudos, agora viria a escolha das cores das camisas. Novamente outro salseiro, não houve acordo. O rabino queria as cores da bandeira de Israel, branca e azul. O maçom pleiteava camisas nas cores que lembrassem a sua irmandade, azul, branca e vermelha. Também puxando para o lado da igreja católica, o padre, queria as cores da Santa Sé, Amarela e Branca. Noite adentro e quase já indo para o soco, os três, num porrete à base Steinhaeger Doble W, não tinham mais capacidade de decidir nada e, novamente ele, o intrometido bodegueiro, lá do fundo da bodega dava o seu palpite: coloquem uma cor de cada instituição. Após olharem fixamente na cara do dono da bodega, se entreolhando e baforando álcool, surpresos, acataram a sugestão, que seria analisada na noite seguinte após a cura do porre. Com a promessa que não “bebericariam” nada até chegarem a uma conclusão, na noite seguinte, os três, decidiram que cada um escolheria duas cores que deveria ser escrita em um pequeno papel. De posse dos três papéis, em cima do balcão, o bodegueiro os abriu e, ali estavam as cores mais escolhidas, amarela, azul e branca, ficando definido que o novo esquadrão teria camisas tricolores.

Com o nome do esquadrão já escolhido, bem como as cores das camisas e escudos, surgiu uma nova dificuldade, a maior de todas, pois todos, alegando vários motivos, queriam ser o primeiro presidente. Reunidos lá no fundo da bodega, todas as noites durante dois meses, o padre, o rabino e o maçom não conseguiam decidir, ninguém abria mão da presidência. Novamente ele, o único sóbrio, o bodegueiro, lá no fundo do bar, as escuras, sugeriu que cada um fizesse uma promoção na sua instituição e aquele que mais arrecadasse seria o presidente fundador do clube. A ideia das promoções ganhou força e vingou. O padre organizou um bingo no salão paroquial, o maçom fez uma rifa de bodes pela loteria federal e o rabino fez uma palestra na sua sinagoga sobre a cabala do dinheiro. Ganhou o judeu dando um vareio na arrecadação ficando eleito como presidente. Independente dos valores arrecadados, o sacerdote e o integrante da ordem maçônica não abriram mão da vice-presidência, sendo ambos empossados no cargo, até porque vice é vice, não manda nada.
O time entrou em campo após esses cinco meses levados para a fundação? Não se sabe e não importa. O interessante é a moral da história. Sacou!

Matéria publicada no Jornal Caiçara em 09/0/2021.

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