HISTÓRIAS DO CRAQUE KIKO – 3 – DUELO NA CIDADE FANTASMA

HISTÓRIAS DO CRAQUE KIKO – 3 – DUELO NA CIDADE FANTASMA

Coisas da bola

Coisas da bola são relatos de fatos vividos por mim, histórias contadas por amigos e outros frutos da minha imaginação.

Qualquer semelhança será puro acaso.

“Jair da Silva Craque Kiko”

Sabedor que no domingo o Cine Luz exibiria em sua tela o comentado bang bang, lançado em 1958, com o título Duelo na Cidade Fantasma, durante toda aquela semana, procurei obedecer aos meus pais, na intenção de ganhar uns trocados para assistir ao famoso faroeste, mesmo que tivesse que executar tarefas que, simplesmente, eu odiava, como ir comprar comida para os cães.
Naquela manhã de segunda-feira, utilizando a bicicleta do meu pai, da marca Prosdócimo, ainda sem ter a altura suficiente para sentar no selim, com a perna direita passada por baixo do cano superior do quadro para conseguir acessar o pedal do lado direito, todo torto, lá ia eu pedalando e excursionando pelos açougues das nossas cidades em busca de vísceras (fígado e bofe) para alimentar os nossos cinco cães de caça.
Quando não eram as vísceras, tinha que encontrar o torresmo prensado em forma de queijo, que pesava em torno de cinco quilos. Odiando tudo aquilo, mas sem reclamar e, com segundas intenções, de ganhar a grana para o ingresso da matinê de domingo, fiz aquele caminho árduo até aos muitos açougues conhecidos. Mais cedo do que de costume, lá tinha eu voltado para casa com o rango dos bichos. Satisfeita comigo, minha mãe colocou os alimentos caninos para cozinhar no fogão anexo ao forno para assar pão, que já ardia num brasido total embaixo do nosso pequeno paiol.
De forma metódica, toda manhã, meu pai acariciava os animais, um a um, vistoriava e limpava as cinco casinhas e, nesse processo, na terça-feira percebeu que o cão que mais gostava, o paqueiro, de nome Garimpo, estava deitado dentro do seu “lar”, totalmente inerte. O Garimpo tinha finado. O cão Garimpo era tão bom, que perseguia a caça mesmo dentro do rio e, quando ela mergulhava para entrar na toca, o cão mergulhava atrás, e dificilmente, ela escapava.
Desesperado, pois aqueles animais eram tratados como membros da família, um veterinário foi acionado, rapidamente, e, após exames, com uma conclusão duvidosa, foi aventada a hipótese de veneno. Nervoso durante todo aquele dia e sem conseguir dormir aquela noite, cedinho na manhã seguinte, ao ir ver os cães, deu de encontro com mais um animal que jazia em sua casinha. Com meu pai, aos brados e chorando, levamos o animal até o veterinário conhecido e após uma necropsia que levou, praticamente, o dia todo, nada foi encontrado, pairando no ar que poderia ser um veneno ainda desconhecido. Analisando também o resto das víscera que eu tinha comprado naquela segunda-feira, o veterinário não encontrou nada suspeito. Na manhã de quinta-feira, e assim sucessivamente, sexta-feira e sábado, os demais cães vieram a óbito, morreram os cinco.
Levado a uma ira quase total, meu pai, confabulando com amigos caçadores, policiais conhecidos encarregados de desvendar a morte dos animais, mais o apoio do veterinário, sentados na grande varanda da nossa casa, suspeitaram de envenenamento por parte de um de nossos vizinhos, morador da rua detrás, mas que os fundos da sua residência fazia divisa com os fundos do nosso terreno, aliás, vizinho este, morador a pouco tempo e que não se dignava a dar um simples bom dia. Talvez, o vizinho tivesse envenenado, pelo incômodo que os cães ocasionavam todo o sábado, sempre a partir das três horas da madrugada, pois eles acostumados a serem levados para as caçadas, começavam a latir e uivar numa euforia total. Em sábados que não iam caçar, a partir das três horas começava o alarido canino, somente cessado quando meu pai levantava da cama, e passando em cada casinha, fazia um afago em cada cão e dava um pedaço de torresmo.
Circulando pelo nosso pátio, sem provas, irado, meu pai deixava sair de sua boca, palavras de baixo calão e ameaças, deixando claro que se fosse descoberto o autor da façanha maligna, com certeza ele secaria a quirera do vivente (finaria), notando-se com isso, que as janelas da casa do suspeito vizinho não mais foram abertas, mas percebia-se a espionagem por detrás das cortinas.
Para encerrar essa parte da minha escrita, relato que nunca foi descoberto o autor da morte dos cachorros, só que o desconhecido morador, ainda naquele mês mudou-se do local. Como conhecido caçador e bom de tiro que era, meu pai, após muita procura, conseguiu novos cães de caça.
Chegou o domingo e, contrário das outras vezes, não fui jogar futebol, o que chamou a atenção da minha mãe. Interpelado por ela, disse que tiraria aquela manhã para tentar conseguir o dinheiro através do pai para o ingresso daquela matinê que era especial, pois além de trocar gibis na frente do Cine Luz antes do início da fita do faroeste tão esperado, assistiria no Canal 100, lances em câmera lenta do futebol carioca. Para pedir o dinheiro foi um parto, porque o meu pai assustava pelo nervosismo, devido a morte de seus cachorros, os quais quase adorava. A muito custo, com ajuda da minha mãe, a verba me foi dada, sobrando ainda alguma para a compra da pipoca.
Como sempre, após trocas de gibis com outros piás em frente ao cinema, lá estava eu, sentado nas primeiras filas com os olhos vidrados na tela num deleite total, até porque, após os trailers, assisti no Canal 100 o grande feito do Vasco na vitória contra o escrete da Estrela Solitária, vibrando com os lances em câmera lenta, onde Garrincha fazia coisas consideradas impossíveis com o balão de couro, mas não conseguia derrubar a cidadela “cruzmaltina”. Fechando a tarde cinematográfica, assisti o tão esperado faroeste Duelo na Cidade Fantasma, que ficou gravado em minha memória.
Quando estava escrevendo essa crônica, por curiosidade decidi procurar no You Tube para ver se encontrava o referido filme, e para minha surpresa, lá estava ele. Interrompi a escrita e assisti ao filme todo no notebook. Ao mesmo tempo que via a película, meus pensamentos eram remetidos naquele ano de 1965 e, me vi, com a mão esquerda segurando uma porção de gibis, enquanto fazia as trocas; sentado nas primeiras filas comendo pipoca e batendo palmas, quando na parte final do filme, o mocinho venceu o facínora num duelo naquela cidade fantasma. Lágrimas correram pela minha face pela lembrança daquela infância vivida com muita intensidade. Me veio também, muitas saudades de muitos amiguinhos e familiares, que já estão em outro patamar, inclusive do meu pai caçador.

Matéria publicada no Jornal Caiçara em 20/11/2020.

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