HISTÓRIAS DO CRAQUE KIKO – 34 BASTIDOR “PESADO” DÁ CANECO.

HISTÓRIAS DO CRAQUE KIKO – 34 BASTIDOR “PESADO” DÁ CANECO.

Coisas da bola

Coisas da bola são relatos de fatos vividos por mim, histórias contadas por amigos e outros frutos da minha imaginação.

Qualquer semelhança será puro acaso.

“Jair da Silva Craque Kiko”

Desde menino, um líder dentro das quatro linhas. Por observação e esperteza aquele boleiro-beque já tinha percebido que triunfar em uma contenda, não era simplesmente saber chutar a bola com destino ao arco contrário. Notara ele, que também nos bastidores – na malandragem e na simpatia teria mais meios de se chegar a uma vitória dentro do tapete verde. Sempre falante, pela liderança carregava a braçadeira de capitão. Procurando orientar a sua turma de esquadrão, também fazia de tudo para ganhar a confiança do mediador. Elogiava-o, e nos questionamentos, com um sorriso na feição tratava o homem de preto com muito respeito e educação. Pela rodagem dentro do futebol neste país-continente, ele era conhecido da maior parte dos apitadores e também tinha ganho a amizade de muitos, o que sempre lhe favorecia dentro das pelejas.
A contenda da vez era mais uma finalíssima de um importante certame de futebol de campo na terra das araucárias. Somente a vitória lhes garantiria o caneco. Aos visitantes – um quadro da capital, a igualdade no escore faria com que voltassem para casa campeões. O prélio seria no Estádio conhecido como Alto do Monte. Como se esperava, aquela praça esportiva estava totalmente abarrotada, pois os caminhões e ônibus colocados à disposição dos torcedores do interior daquela cidade retornaram apinhados de gente. Foi o maior e mais espetacular público em uma porfia de futebol naquele canto do Estado. Aquele título teria que ser ganho na limpeza ou na sujeira, porque em duas decisões de anos anteriores, batera na trave. Foram “afanados” e alijados da conquista, tendo em vista que os homens de preto naqueles dois cotejos vieram “preparados” para favorecer aos visitantes. Pela falta de malandragem e inexperiência, o quadro daquele boleiro-beque havia sido garfado dentro de seus domínios. Mas agora eles tinham aprendido, nesta decisão jogariam pesado, também nos bastidores.
Durante os dias e na calada das noites da semana que antecedeu aquela pugna decisiva, o homem da “mala preta” daquele clube interiorano fez um turismo à capital. Além da promessa de grande “mufunfa”, presenteou os dirigentes da entidade máxima do futebol com whisky, vinhos, e podem acreditar, lombos de carneiros e patos recheados, tanto é, que o juizão solicitado pela direção do clube foi escalado para mediar a refrega decisiva. Tudo estava pronto e premeditado. Aquele caneco teria que ficar em casa, não só devido ao “onze” que era muito bom, mas porque o homem do referee viria “pronto”. Se não conseguissem o triunfo na bola, o apitador sabia que teria que dar um jeito.
Como capitão do esquadrão, naquela tarde antes do prélio o boleiro-beque foi receber o conhecido mediador no portão de acesso ao estádio e, sem que ninguém percebesse, deixou o juizão a par, que sob o banco, dentro do seu vestiário estava um maço de notas do tamanho e valor que ele jamais teria visto. Sussurrou no ouvido do apitador: é um presente. Salientou, com uma mensagem de “pressão subliminar”, para que ele não se preocupasse, pois se tudo saísse dentro dos “conformes” a integridade física dele estaria garantida.
Pelos dois tuneis de acesso, os dois esquadrões adentraram juntos às quatro linhas. No centro do gramado, na hora do par ou ímpar, os dois capitães, além de presentearem um ao outro com uma flâmula do seu clube, ficaram surpresos, se reconheceram, pois eram ex-moradores da mesma cidade e tinham um grau de parentesco – mesmo que de longe. Um, era o boleiro-beque do esquadrão do interior, o outro era o centroavante do quadro da capital. Após uma pequena resenha sobre a terra natal, se abraçaram. O homem de preto trilou o apito e a “mexerica” rolou. A contenda transcorria equilibrada, aguerrida, pau a pau, digna de uma decisão. Acusou o escore parcial na primeira metade, zero a zero. Rolou o balão de couro na etapa derradeira. A massa inflamada não parava de gritar. O mediador com uma atuação estupenda apitava tudo em cima do lance, nem de longe deixando claro que tinha recebido uma baita verba.
Achando que o juiz tinha pipocado no “acerto”, usando da sua malandragem aquele boleiro beque-capitão interiorano foi o protagonista no lance de expulsão do capitão contrário, o centroavante, seu parente. Estando lado a lado, enquanto conversavam quase dentro da meia-lua da sua grande área, no mesmo momento em que o mediador dirigia o olhar para os dois, com uma de suas mãos o beque-capitão apanhou a mão direita do centroavante trazendo-a contra o seu rosto. E num gritedo de ai… ai… ai…, se jogou ao chão simulando uma agressão. Incontinenti, o juizão mandou o centroavante da capital tomar banho mais cedo. O pau cantou e a contenda ficou vários minutos paralisada. Na cabine de rádio destinada para a emissora da capital, uns criticavam o centroavante pela atitude, outros o defendiam dizendo que fora vítima da malandragem do beque. Serenados os ânimos, mas revoltados, o onze da capital armou uma retranca para tentar garantir o empate. Sofrendo muita pressão dos da casa, a bola teimava em não entrar na cidadela visitante. Batia na trave, no costado ou nas nádegas dos dez defensores e nada do tento sair, deixando claro que poderiam adentrar a noite peleando que a peca não iria ninar no fundo dos cordéis.
Faltando uns dez minutos para o final do cotejo caiu um toró de chuva acompanhado de raios. Novamente o confronto ficou interrompido. Meio que na surdina o homem do referee se aproximou do beque-capitão, e quase sussurrando, balbuciou que era para ele mandar um atacante cair dentro da área. Orientado para beijar o barro o ponta de lança dos da casa teimava em não se atirar ao chão. Nervoso, a ponto de ter um colapso cardíaco, o juizão gesticulou e perguntou para o beque-capitão: o cara vai cair ou não vai? E, em mais uma blits dentro da área grande dos da capital, faltando um minuto para o término, em um bate rebate, numa dividida quem se atirou ao chão foi o beque-capitão. Ouviu-se aquele apito do referee, tão forte como nenhuma vez naquele cotejo. No ato, cercado sob protesto dos visitantes, o mediador com o indicador em riste, sinalizou e mandou colocar a redonda na marca da cal. Pênalti marcado para os da casa. A grande massa torcedora que já estava atrás da meta ojerizando o guarda-valas da capital dobrou em quantidade, foi à loucura. Em um grito uníssono todos começaram a gritar o nome do cobrador oficial, tendo a certeza de que mais uma vez ele estufaria os cordéis, pois naquele certame, não tinha errado nenhum. E lá foi o beque-capitão. A chuva caia e a marca penal estava cheia de água. Ele colocou a deusa branca um pouco mais para trás. Posicionado para a cobrança, aguardava o golquíper ir para o centro da sua meta. Embaixo da trave toda sem grama também tinha o acúmulo de água e estava num barral só feito pelas traves da chuteira daquele enorme arqueiro. Para um jovem, aquele momento decisivo poderia influenciar no seu psicológico, mas não no beque-capitão, nunca teve medo, a sua experiência naquilo era para poucos. Na certeza de que o barbante seria estufado ele estava ansioso para sair para o “abraço”. Era fitado pelo guardião que retirava o barro acumulado nas travas das suas chancas ao bater com os solados na parte inferior de um dos postes. Em alto som, com o dedo indicador apontado para o beque-cobrador, o quíper falava: vou catar…vou catar…vou catar. Nada daquele palavreado incomodava o cobrador. “Zóio no zóio”, o golquíper e o beque se encaravam num sorriso maroto, pois os gritos da torcida entoando o nome do beque-capitão prenunciava naquele ato o tento do título. Na distância de sempre, com toda a massa torcedora gritando o seu nome, ouviu-se o forte trilar do apito – convicto do canto escolhido o beque-batedor correu em direção da pelota. No mesmo instante que batia com o pé direito na deusa branca, resvalou e o tiro saiu chocho indo mansamente no canto contrário ao escolhido pelo guapo para efetuar a defesa. Tentando retornar e se atirar para catar aquele chute chocho, o guapo também resvalou naquele barral não conseguindo chegar a tempo, e aquela bola, mansamente, parecendo uma eternidade, somente transpôs a linha da meta sem sequer encostar na rede. O grito de gol, engasgado, ecoou por todas aquelas paragens. A torcida pulou o alambrado e invadiu o campo, e carregando nos ombros o beque-capitão, já comemorava o caneco. Com vários minutos de interrupção, o juizão após o chute para reinício, sem dar nenhum acréscimo trilou definitivamente o apito e, aquele esquadrão que fora garfado em dois anos anteriores, pela primeira vez abiscoitou aquele certame e junto com os torcedores invasores deu a volta olímpica.
Muitos anos se passaram, e em uma semana véspera ao dia de Natal, aguardando a esposa e filhos que visitavam as lojas para comprarem presentes, aquele beque-capitão tomava deliciosamente um chope sentado em um barzinho em plena rua XV, na capital paranaense. Totalmente absorto vendo o enorme movimento de pessoas que por ali transitavam, ele foi pego de surpresa quando um estranho de supetão se sentou em uma cadeira bem a sua frente. Olhos nos olhos, encarando bem aquele homem, ele tentava lembrar de onde o conhecia. Percebendo que o beque-capitão não estava reconhecendo-o, ele se aproximou e balbuciou: manda um atacante cair dentro da área. Ao ouvir aquelas palavras, imediatamente, como que se abrindo as cortinas, um filme sobre aquele prélio decisivo começou a rodar na tela da mente do beque. A cena foi interrompida quando aquele senhor falou: não apito mais, encerrei a carreira naquele cotejo. Respondeu o beque: aquele foi o meu último caneco, pendurei as chuteiras naquela contenda. Sem trocar mais nenhuma palavra sobre futebol, papeando sobre vários assuntos os dois tomaram vários chopes até o instante em que a esposa e filhos do beque campeão chegaram cheios de pacotes de presentes. Após chamar o garçom para quitar as despesas, o zagueiro foi impedido de fazê-lo. Novamente balbuciando em um dos ouvidos, aquele ex-mediador falou: a despesa hoje é por minha conta, pois com aquele maço de dinheiro comprei um Ford Corcel ano 1970.

Texto publicado no Jornal Caiçara em 10/11/2022.

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