HISTÓRIAS DO CRAQUE KIKO – 38 FIAT 147 AMARRADO COMO SE FOSSE UM CAVALO.

HISTÓRIAS DO CRAQUE KIKO – 38 FIAT 147 AMARRADO COMO SE FOSSE UM CAVALO.

Coisas da bola

Coisas da bola são relatos de fatos vividos por mim, histórias contadas por amigos e outros frutos da minha imaginação.

Qualquer semelhança será puro acaso.

“Jair da Silva Craque Kiko”

Em busca de trabalho e melhores condições de vida, lá pelo final de década de 1960, este vivente aqui, desandou para os cantos do Sudoeste paranaense. Na busca do pão de cada dia e correndo atrás de conhecimento nas escolas por lá, eu também dava uns chutes em uma “deusa branca” dentro dos vários palcos verdes. Convivendo no meio esportivo, o meu círculo de amizades era deveras grande. Quem estanciou ou conhece as veredas da região Sudoeste do Paraná sabe do enorme contingente de gaúchos que lá tem residência e, não poderia ser diferente a imensa torcida pelos esquadrões dos pampas, principalmente, Grêmio e Internacional. Além de torcedores fanáticos, a rivalidade chega a fugir do controle quando eles peleiam entre si. Mas, deixemos a rivalidade de lado e vamos contar o “causo”, acho que inusitado, de um amigo torcedor fanático, onde também fui um dos coadjuvantes.

No ano de 1979, o certame brasileiro corria solto e o esquadrão do Internacional, de Porto Alegre, se apresentaria na capital paranaense. Litigaria com o melhor quadro do Paraná naquele ano, o tradicional Coxa-Branca, no Estádio Major Antônio Couto Pereira. Correndo atrás do tricampeonato brasileiro, pois tinha sido bicampeão em 1975/76, o colorado gaúcho tinha o seu elenco recheado de craques que desequilibravam uma contenda. Jogadores como o Falcão, o príncipe Jajá, Mauro Galvão e Mário Sérgio vinham arrebentando naquela fase do certame e, assistir um prélio desse verdadeiro escrete gaúcho era um privilégio, portanto, qualquer sacrifício valeria a pena.

De posse de seu carro zero-bala, um Fiat 147, recém-comprado, meu amigo torcedor ferrenho decidiu que podia até chover canivetes, mas não perderia a oportunidade de ver de perto os astros do seu querido e amado Internacional na capital do Paraná. Conversando com uns aqui, outros ali, conseguiu arregimentar, eu e mais dois colegas desportistas, para dividirmos as despesas e realizar o seu sonho – ir à Curitiba ver o seu time do coração. Ainda de manhazinha naquele dia da contenda, com as merendas para o almoço nos alforjes individuais, faceiro na boleia, meu amigo pôs para rodar o seu 147 zero-quilômetro. Todos alegres, cantando e contando histórias da bola, lá íamos nós quatro com destino à cidade sorriso. Na metade da viagem, após pararmos em um posto de combustível, as marmitas dos alforjes foram consumidas rapidamente e a viagem teve sequência – não podíamos nos atrasar, queríamos torcer e vibrar já com a entrada do esquadrão à campo. Se conseguíssemos um autógrafo dos craques, então, seria o máximo.

Tendo rodado cerca de 500 quilômetros o Fiat 147 mostrou a que veio. Na base de 100km por hora cobrimos com facilidade a distância para assistirmos aquela peleja. Chegando nos arredores do estádio, procurando um local seguro para estacionar, meu amigo “motora” deixou o seu Fiat 147 novinho em folha estacionado bem ao lado de um poste. Eu e os demais companheiros ficamos pasmos, pois como se fosse amarrar um cavalo, ele retirou do porta-malas um pedaço de corrente e amarrou o chassi ao poste e colocou dois cadeados como prevenção. Disse-nos que era para precaução e que só assim assistiria tranquilamente o cotejo.

Já estávamos em frente das bilheterias, quando os portões de acesso foram abertos para o público. Sem conhecermos direito o local para os torcedores do esquadrão visitante, nos abancamos em um lugar quase vazio, onde achamos que teríamos melhor visualização. Trajando uma camisa na cor de carvão aceso, segurando uma pequena bandeira também na cor de sangue, nosso amigo motorista, feliz da vida, colocou em sua cabeça uma faixa amarrada onde se conseguia ler bem na parte frontal da testa, “Saci Colorado”. Faceiros, nós três também colocamos uma faixa na cabeça e aguardávamos com ansiedade a entrada do Internacional ao gramado. Enquanto tomávamos umas cuiadas de tererê, não percebemos que estávamos sentados bem no meio da torcida coxa-branca, que já começava a lotar aquele local. Somente caiu a nossa ficha, quando começamos a sentir que estavam jogando coisas em nossas costas e ouvir o palavreado daqueles torcedores: se mandem daí viadedo do Sul. Mexido em seus “brios” dois dos nossos parceiros pensaram em um enfretamento, mas foram contidos quando dois policiais espertos se aproximaram e pediram para que nós saíssemos dali, para que fossemos ficar junto com a torcida colorada. Passando pelo meio da torcida do Coritiba, ouvindo xingamentos e palavras de baixo calão, com medo, conseguimos chegar e ficar juntos com a torcida do Internacional. Aí, foi só alegria e gritedo de incentivo ao assistirmos aquele enfrentamento futebolístico.

Fazendo jus aos seus craques, o esquadrão gaúcho meteu três buchas no lombo dos Coxas e venceu até com facilidades o duelo. Após o término da peleja, mais felizes da vida, nos dirigimos até o veículo para iniciarmos o retorno para o Sudoeste. Viajaríamos a noite toda. Só não imaginávamos a surpresa que teríamos ao retornar onde o Fiat estava amarrado no poste. Não encontramos veículo nenhum. Tinham roubado. Só estava por ali a corrente e um dos cadeados, juntamente com um bilhete dobrado e colocado dentro de um elo, onde o larápio escreveu: roubar tudo é muita sacanagem e não sou tão malvado assim, fique com a corrente e um dos cadeados. As vistas escureceram, e com as pernas bambas o nosso amigo dono do Fiat 147 desmaiou e teve que ser levado rapidamente até um pronto-socorro, onde ficou em observação, enquanto nós três passamos a noite em claro em um banco na rodoviária tentando digerir o acontecido.

Após ele receber alta médica pela manhã, fomos até uma delegacia próxima, onde foi aberto um boletim de ocorrências. O escrivão disse que era mera formalidade e que aquele carango “já era”. Com o nosso sistema nervoso e pressão arterial ainda na “copa dos paus”, sem outra alternativa fomos para a rodoviária pensando em um retorno de ônibus. Voltamos de busão, mas com um juramento feito para o amigo dono do Fiat roubado. Que a nossa boca teria que ser um túmulo e ninguém mais deveria saber do ocorrido. Ele não queria ser alvo das gozações que com certeza fariam. O juramento foi mantido até o dia em que ele recebeu o dinheiro do seguro e comprou outro veículo. Acho que ele era um torcedor meia-tigela, pois nunca mais quis ouvir falar do esquadrão do seu Saci Colorado.

Texto publicado no Jornal Caiçara em 25 de fevereiro de 2023.

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